quarta-feira, 1 de abril de 2020

Digo, desdigo

Desistir de Diadorim, foi o que eu falei? Digo, desdigo. Pode até ser, por meu desmazelo de contar, o senhor esteja crendo que, no arrancho do acampo, eu pouco visse Diadorim, amizade nossa padecesse de descuido ou míngua. O engano.Tudo em contra. Diadorim e eu, a gente parava em som de voz e alcance dos olhos, constante um não muito longe do outro. De manhã à noite, a afeição nossa era duma cor e duma peça. Diadorim, sempre atencioso, esmarte, correto em seu bom proceder. Tão certo de si, ele repousava qualquer mau ânimo. Por que é, então, que eu salto isso, em resumo, como não devia de, nesta conversa minha abreviã? Veja o senhor, o que é muito e mil! estou errando. Estivesse contando ao senhor, por tudo, somente o que Diadorim viveu presente mim, o tempo ― em repetido igual, trivial ― assim era que eu explicava ao senhor aquela verdadeira situação de minha vida. Por que é, então, que deixo de lado? Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada! quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom. Seja? E, aquele Garanço, olhe! o que eu dele disse, de bondade e amizade, não foi estrito. Sei que, naquela vez, não senti. Só senti e achei foi em recordação, que descobri, depois, muitos anos. Coitado do Garanço, ele queria relatar, me falava: ― Fui almocreve, no Serém.Tive três filhos... Mas, que sorte de jagunço recluta era ele ― assim meninoso, jalôfo e bom. ― Eta, e você já matou seus muitos homens, Garanço? ― pois perguntei. O riso dele ficava querendo ser mais grosso: ― Eh, eh, nós... Sou algum medroso? E mecê encomenda o quê, no rifle que está em minha mão, mano velho! Eh, não desprevino, não lhe envergonho o desse... O Garanço, mesmo afirmo, acho que nunca duvidou de coisa nenhuma. Toda tardeza dele não deixava. E só. Comum de benquistar e malquistar.
O senhor entenderá? Eu não entendo. Aquele Hermógenes me fazia agradados, demo que ele gostava de mim. Sempre me saudando com estimação, condizia um gracejo amistoso ou umas boas palavras, nem parecia ser o bedegueba. Por cortesia e por estatuto, eu tinha de responder. Mas, em mal. Me irava. Eu criava nôjo dele, já disse ao senhor. Aversão que revém de locas profundas. Nem olhei nunca nos olhos dele. Nôjo, pelos eternos ― razão de mais distâncias. Aquele homem, para mim, não estava definitivo. E arre que ele não desconfiava, não percebia! Queria conversa, me chamava; eu tinha de ir ― ele era o chefe. Fiquei de ensombro. Diadorim notou; me deu conselho: ― Modera esse gênio que você tem, Riobaldo. As pessoas não são tão ruins agrestes. ― Dele não me temo! ― eu respondi. Eu podia xingar com os olhos. Aí, o Hermógenes me presenteou com um nagã, e caixas de balas. Estive para nem aceitar. Eu já possuía revólver meu, carecia algum daquele, de tanto só cano, tão enorme? Por insistências dele, mesmo, com aquilo fiquei. Cuspi, depois. Dado que eu nunca ia retribuir! Queria eu lá viver perto de chefes? Careço é de pousar longe das pessoas de mando, mesmo de muita gente conhecida. Sou peixe de grotão. Quando gosto, é sem razão descoberta, quando desgosto, também. Ninguém, com dádivas e gabos, não me transforma. Aquele Hermógenes era matador ― o de judiar de criaturas filhos-de-deus ― felão de mau. Meus ouvidos expulsavam para fora a fala dele. Minha mão não tinha sido feita para encostar na dele. Ah, esse Hermógenes ― eu padecia que ele assistisse neste mundo... Quando ele vinha conversar comigo, no silêncio da minha raiva eu pedia até ao demônio para vir ficar de permeio entre nós dois, para dele me apartar. Eu podia rechear de balas aquele nagã próprio, e descarregar nele tiros, entre os todos olhos. O senhor tolere e releve estas palavras minhas de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia, sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais.
Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores.Tudo cabe. Conforme contei ao senhor, quando Otacília comecei a conhecer, nas serras dos gerais, Buritís Altos, nascente de vereda, Fazenda Santa Catarina. Que quando só vislumbrei graça de carinha e riso e boca, e os compridos cabelos, num enquadro de janela, por o mal acêso de uma lamparina. Mas logo fomos para acomodar, numa rebaixa de engenho-de-pilões, lá pernoitamos. Eu, com Diadorim, Alaripe, João Vaqueiro e Jesualdo, e o Fafafa. No que repontávamos de dura viagem! tudo o que era corpo era bom cansaço. Mas eu dormi com dois anjos-da-guarda.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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