sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

José Leonardo

Aparecia aos sábados na feira, sob um vasto chapéu, aprumado na carona bojuda, numa complicação de alforjes, látegos e bagagens. Foi o sujeito mais digno que já vi. Sério, de uma seriedade imóvel e de estátua, os grandes olhos claros cheios de franqueza.
Conservo a impressão de que José Leonardo, sem se apressar, fazia tudo direito: funcionava como um relógio, as rodas movendo-se regulares, os ponteiros indicando certo número de deveres.
Os negociantes festejavam-no e disputavam-no. O irmão, Antônio Freire, não ligava importância a obrigações: vivia na rua, pedindo aqui e ali o que precisava. Toda a gente o atendia. José Leonardo pagava sem regatear, fingia não perceber aquelas descaídas, e os bodegueiros inventavam contas, sangravam-no.
Não sei como esse homem se aproximou de mim. A seriedade e o silêncio deviam afastar-nos. Trouxe-me presentes, ficamos amigos, levou-me ao Pico, a fazenda que possuía a duas léguas da vila. De inverno a verão, a campina alongava uma faixa de verdura na catinga. Longe, um serrote se erguia a prumo, esquisito muro de pedra rematado por unia ponta com aparência de árvore morta. Daí, o nome da propriedade. Corria de lá um fio de água, que não engrossava nem se reduzia. Canalizado na valeta, domesticado na bica de madeira, despejava no cocho que apodrecia debaixo de um pé de jitó, excelente banheiro. Lembro-me do meu primeiro banho. No calor, o jacto frio nos acariciava. Seu Filipe Fenício esfregava-se com sabão e estava cor de alfenim.
Sacudia uma parte do corpo, como se quisesse despregá-la. Mergulhando no tanque raso, resfolegava como um bicho. Erguia-se, livre da espuma, limpo e fresco. Os bigodes longos derramavam-se, brancos, os pelos da barriga emaranhavam-se, brancos também, e surpreendiam-me. Eu não supunha que existissem pessoas tão cabeludas.
Do cocho a água se derramava, corria solta na várzea, regava o canavial, de canas enormes, único por aqueles sítios. Finda a umidade, o sertão ia surgindo, a princípio vacilante e morno, povoado de ouricuris e cajueiros chinfrins, depois seco e amarelo, coberto de cactos, ossadas e seixos. Aí se arrastavam as criaturas famintas e sujas que vendiam na feira cestos de imbu e caça miúda. Em tempo de escassez viviam disso, e como a escassez era frequente, emigravam, finavam-se na miséria. Uma ou outra cabana, chiqueiros de cabras morrinhentas, badalar triste de chocalho.
Nas minhas viagens ao Pico, arrumado à garupa do cavalo de José Leonardo, eu bocejava no mormaço, olhando a planície crestada, buscando uma folhagem de juazeiro. De repente, fartura e sombra, inalteráveis, que tinham dado ao pequeno proprietário aquela serenidade. Realmente José Leonardo não dependia. Os fazendeiros da região submetiam-se a alternativas: anos de abundância e anos de penúria. Às vezes a terra produzia em excesso, outras vezes não produzia nada. Dissipação, mesquinharia. E contra isso qualquer esforço era inútil.
José Leonardo não conhecia lucros desmedidos nem prejuízos. Dedicava-se a uma indústria segura, diferente da dos vizinhos, Não criava gado — e o Pico estava isento da lama e das moscas dos currais. Vestia pano em casa e no trabalho, coisa espantosa. Em geral só os habitantes da rua usavam tecido. Os matutos se encouravam, mexiam-se como tatus. Pelas redondezas para bem dizer não havia lavoura além da sovina plantação feita nas vazantes dos açudes e nas margens gretadas dos rios periódicos. Os surrões de milho e feijão, em casa de meu avô, procediam da mata, distante. Os homens ferravam, capavam, ordenhavam, retalhavam mantas de carne, curtiam, fabricavam látegos e cordas; as mulheres enchiam potes de leite, mudavam-no em coalhada e em queijo.
No Pico não se percebia o cheiro do sangue nem a podridão das bicheiras. E ocupações desconhecidas logo me impressionaram. Fiquei tempo esquecido na engenhoca, admirando bois encangados, a mover-se em redor de um eixo, a cana a triturar-se em moendas de pau, o caldo a esguichar numa calha que despejava na primeira tacha do assentamento. Daí se baldeava a outras, em cuias presas em varas. E da terceira um melado vermelho passava às formas, que deixavam no chão coberto de bagaço uma chusma de rapaduras.
Nunca me havia ocorrido que as rapaduras fossem consequência de trabalho humano. Encaixadas, nas bodegas, não pareciam exigir tantos preparos.
Aquilo era uma diversão curiosa. Bonitas, cor de ouro, empilhavam-se ainda quentes. E desejei permanecer ali, ao calor da fornalha, vendo a cana esmagar-se, o líquido borbulhar nas talhas, engrossar, solidificar-se.
À noite, na casa-grande, dançavam e cantavam. O luar feria pedrinhas alvas nos caminhos. Achei que uma delas brilhava mais que as outras — e José Leonardo obrigou-me a aceitá-la. Conservei alguns anos a preciosidade que faiscava na treva. Num canto de parede, como brasa perdida no borralho, avivava, em horas de aborrecimento e dor, aquelas recordações — a faixa do canavial, água empapando a várzea, bois mansos pezunhando na engenhoca, o mel a ferver nas tachas, danças, cantigas, a plumagem viva das araras. E iluminava a figura que se ia distanciando no passado, fria, digna, tranquila. Bondade diferente das bondades comuns. Não nos atraía, mas inspirava confiança, vencia o desgraçado acanhamento que me embrulhava a língua, escurecia a vista, gelava as mãos.
Fiz numerosas perguntas a José Leonardo, e ele nunca se espantou. Às vezes hesitava, procurava-me na cara o sentido da frase obscura. E a informação vinha, natural e paciente. Sem me haver impressionado em demasia, esse homem deixou-me lembrança que se estirou e me dispôs a sentimentos benévolos.
Mudei-me, fui viver na cidade. A pedra faiscante sumiu-se — e o meu quarto, rezadas as orações, apagado o candeeiro de querosene, escureceu. Mas a imagem serena me acompanhou. Fixou-se na parede, à noite, perto das litografias de santos, compreensiva e generosa, sem tentar corrigir-me, sem dar-me os conselhos que sempre me aperrearam e não serviram para nada.
Graciliano Ramos, in Infância

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