sábado, 1 de fevereiro de 2020

A morte e a morte de Quincas Berro-D’Água - VIII


No fim da tarde, quando as luzes se acendiam na cidade e os homens abandonavam o trabalho, os quatro amigos mais íntimos de Quincas Berro Dágua – Curió, Negro Pastinha, cabo Martim e Pé-de-Vento – desciam a ladeira do Tabuão em caminho do quarto do morto. Deve-se dizer, a bem da verdade, que não estavam eles ainda bêbedos. Haviam tomado seus tragos, sem dúvida, na comoção da notícia, mas o vermelho dos olhos era devido às lágrimas derramadas, à dor sem medidas, e o mesmo pode-se afirmar da voz embargada e do passo vacilante. Como conservar-se completamente lúcido quando morre um amigo de tantos anos, o melhor dos companheiros, o mais completo vagabundo da Bahia?
Quanto à garrafa que o cabo Martim teria escondido sob a camisa, nada ficou jamais provado. Naquela hora do crepúsculo, do misterioso começo da noite, o morto parecia um tanto quanto cansado. Vanda dava-se conta. Não era para menos: passara ele a tarde a rir, a murmurar nomes feios, a fazer-lhe caretas. Nem mesmo quando chegaram Leonardo e o tio Eduardo, por volta das cinco horas, nem mesmo então Quincas repousou. Insultava Leonardo, paspalhão!, ria de Eduardo. Mas, quando as sombras do crepúsculo desceram sobre a cidade, Quincas tornou-se inquieto. Como se esperasse alguma coisa que tardava a vir. Vanda, para esquecer e iludir-se, conversava animadamente com o marido e os tios, evitando fitar o morto. Seu desejo era voltar para casa, descansar, tomar um comprimido que a ajudasse a dormir. Por que seria que os olhos de Quincas ora se voltavam para a janela, ora para a porta?
A notícia não alcançara os quatro amigos ao mesmo tempo. O primeiro a saber foi Curió. Empregava ele seus múltiplos talentos na propaganda de lojas da Baixa dos Sapateiros. Vestido com um velho fraque surrado, a cara pintada, postava-se na porta de uma loja, contra mísero pagamento, a louvar-lhe a barateza e as virtudes, a parar os passantes dizendo-lhes graçolas, convidando-os a entrar, quase arrastando-os à força. De quando em vez, quando a sede apertava – emprego danado para secar a garganta e o peito –, dava um pulo num botequim próximo, tomava um trago para temperar a voz. Numa dessas idas e vindas a notícia o alcançou, brutal como um soco no peito, deixou-o mudo. Voltou cabisbaixo, entrou na loja, avisou o sírio que não contasse mais com ele naquela tarde. Curió era ainda moço, alegrias e tristezas afetavam-no profundamente. Não podia suportar sozinho o choque terrível. Precisava da companhia dos outros íntimos, da turma habitual.
A roda, em frente à rampa dos saveiros, na feira noturna de Água dos Meninos aos sábados, nas Sete Portas, nas exibições de capoeira na estrada da Liberdade, era quase sempre numerosa: marítimos, pequenos comerciantes do Mercado, babalaôs, capoeiristas, malandros participavam das longas conversas, das aventuras, das movimentadas partidas de baralho, das pescarias sob a lua, das farras na zona. Numerosos admiradores e amigos possuía Quincas Berro Dágua, mas aqueles quatro eram os inseparáveis. Durante anos e anos haviam-se encontrado todos os dias, haviam estado juntos todas as noites, com ou sem dinheiro, fartos de bem comer ou morrendo de fome, dividindo a bebida, juntos na alegria e na tristeza. Curió somente agora percebia como eram ligados entre si, a morte de Quincas parecia-lhe uma amputação, como se lhe houvessem roubado um braço, uma perna, como se lhe tivessem arrancado um olho. Aquele olho do coração do qual falava a mãe-de-santo Senhora, dona de toda a sabedoria. Juntos, pensou Curió, deviam chegar ante o corpo de Quincas. Saiu em busca do Negro Pastinha, àquela hora certamente no largo das Sete Portas, ajudando bicheiros conhecidos, arranjando uns cobres para a cachaça da noite. Negro Pastinha media quase dois metros, quando estufava o peito semelhava num monumento, tão grande e forte era. Ninguém podia com o negro quando lhe dava a raiva. Felizmente coisa difícil de acontecer, pois Negro Pastinha era de natural alegre e bonachão. Encontrou-o no largo das Sete Portas, como calculara. Lá estava ele, sentado na calçada do pequeno mercado, debulhado em lágrimas, segurando uma garrafa quase vazia. Ao seu lado, solidários na dor e na cachaça, vagabundos diversos faziam coro às suas lamentações e suspiros. Já tivera conhecimento da notícia, compreendeu Curió ao ver a cena. Negro Pastinha virava um trago, enxugava uma lágrima, urrava em desespero:
Morreu o pai da gente...
...pai da gente... – gemiam os outros.
Circulava a garrafa consoladora, cresciam lágrimas nos olhos do negro, crescia seu agudo sofrer:
Morreu o homem bom...
...homem bom...
De quando em quando, um novo elemento incorporava-se à roda, por vezes sem saber do que se tratava. Negro Pastinha estendia-lhe a garrafa, soltava seu grito de apunhalado:
Ele era bom...
...era bom... – repetiam os demais, menos o novato, à espera de uma explicação para os tristes lamentos e a cachaça grátis.
Fala também, desgraçado... – Negro Pastinha, sem se levantar, espichava o poderoso braço, sacudia o recém-chegado, um brilho mau nos olhos. – Ou tu acha que ele era ruim?
Alguém se apressava a explicar, antes que as coisas se tornassem malparadas.
Foi Quincas Berro Dágua que morreu.
Quincas?... era bom...
dizia o novo membro do coro, convicto e aterrorizado.
Outra garrafa! – reclamava, entre soluços, Negro Pastinha.
Um molecote levantava-se ágil, dirigia-se à venda vizinha:
Pastinha quer outra garrafa.
A morte de Quincas aumentava, onde ia chegando, a consumação de cachaça. De longe, Curió observava a cena. A notícia andara mais depressa que ele. Também o negro o viu, soltou um urro espantoso, estendeu os braços para o céu, levantou-se:
Curió, irmãozinho, morreu o pai da gente.
...o pai da gente... – repetiu o coro.
Cala a boca, pestes. Deixa eu abraçar irmãozinho Curió.
Cumpriam-se os ritos de gentileza do povo da Bahia, o mais pobre e o mais civilizado. Calaram-se as bocas. As abas do fraque de Curió elevavam-se ao vento, sobre sua cara pintada começaram a correr as lágrimas. Três vezes abraçaram-se, ele e Negro Pastinha, confundindo seus soluços. Curió tomou da nova garrafa, buscou nela a consolação. Negro Pastinha não encontrava consolação:
Acabou a luz da noite...
...a luz da noite...
Curió propôs:
Vamos buscar os outros para ir visitar ele.
Cabo Martim podia estar em três ou quatro lugares. Ou dormindo em casa de Carmela, cansado ainda da noite da véspera, ou conversando na rampa do Mercado, ou jogando na feira de Água dos Meninos. Só a essas três ocupações dedicava-se Martim desde que dera baixa do Exército, uns quinze anos antes: o amor, a conversação, o jogo. Jamais tivera outro ofício conhecido, as mulheres e os tolos davam-lhe o suficiente com que viver. Trabalhar depois de ter envergado a farda gloriosa parecia a cabo Martim uma evidente humilhação. Sua altivez de mulato boa-pinta e a agilidade de suas mãos no baralho faziam-no respeitado. Sem falar em sua capacidade ao violão.
Estava ele exercendo suas habilidades na feira de Água dos Meninos, ao baralho. Ao fazê-lo com tanta simplicidade, concorria para a alegria espiritual de alguns choferes de marinete e caminhão, colaborava na educação de dois molecotes que iniciavam seu aprendizado prático da vida e ajudavam uns quantos feirantes a gastar os lucros obtidos nas vendas do dia. Realizava assim obra das mais louváveis. Não se explica, por consequência, que um dos feirantes não parecesse entusiasta de seu virtuosismo ao bancar, rosnando entre dentes que tanta sorte fedia a bandalheira. Cabo Martim levantou para o apressado crítico seus olhos de azul inocência, ofereceu-lhe o baralho para que ele bancasse, se quisesse e para tanto possuísse a necessária competência. Quanto a ele, cabo Martim, preferia apostar contra a banca, quebrá-la rapidamente, reduzir o banqueiro à mais negra miséria. E não admitia insinuações sobre sua honestidade. Como antigo militar, era particularmente sensível a qualquer murmúrio que envolvesse dúvidas sobre sua honradez. Tão sensível que a uma nova provocação seria obrigado a quebrar a cara de alguém. Cresceu o entusiasmo dos rapazolas, os choferes esfregaram as mãos, excitados. Nada mais deleitável do que uma boa briga, assim gratuita e inesperada. Nesse momento, quando tudo podia se passar, surgiram Curió e Negro Pastinha carregando a notícia trágica e a garrafa de cachaça com um restinho no fundo. Ainda de longe gritaram para o Cabo:
Morreu! Morreu!
Cabo Martim fitou-os com olho competente, demorando-se na garrafa em cálculos precisos, comentou para a roda:
Aconteceu alguma coisa importante para eles já terem bebido uma garrafa. Ou bem Negro Pastinha ganhou no bicho ou Curió ficou noivo.
Porque sendo Curió um incurável romântico, noivava frequentemente, vítima de paixões fulminantes. Cada noivado era devidamente comemorado, com alegria ao iniciar-se, com tristeza e filosofia ao encerrar-se, pouco tempo depois.
Alguém morreu... – disse um chofer.
Cabo Martim estende o ouvido.
Morreu! Morreu!
Vinham os dois curvados ao peso da notícia. Das Sete Portas à Água dos Meninos, passando pela rampa dos saveiros e pela casa de Carmela, haviam dado a triste nova a muita gente. Por que cada um, ao saber do passamento de Quincas, logo destampava uma garrafa?
Não era culpa deles, arautos da dor e do luto, se havia tanta gente pelo caminho, se Quincas tinha tantos conhecidos e amigos. Naquele dia começou-se a beber na cidade da Bahia muito antes da hora habitual. Não era para menos, não é todos os dias que morre um Quincas Berro Dágua.
Cabo Martim, esquecido da briga, o baralho suspenso na mão, observava-os cada vez mais curioso. Estavam chorando, já não tinha dúvidas. A voz do Negro Pastinha chegava estrangulada:
Morreu o pai da gente...
Jesus Cristo ou o governador? – perguntou um dos molecotes com vocação de piadista. A mão do negro o suspendeu no ar, atirou-o no chão. Todos compreenderam que o assunto era sério, Curió levantou a garrafa, disse:
Berro Dágua morreu!
Caiu o baralho da mão de Martim. O feirante malicioso viu confirmarem-se suas piores suspeitas: ases e damas, cartas do banqueiro, espalharam-se em quantidade. Mas também até ele chegara o nome de Quincas, resolveu não discutir. Cabo Martim requisitava a garrafa de Curió, acabou de esvaziá-la, atirou-a fora com desprezo. Olhou longamente a feira, os caminhões e marinetes na rua, as canoas no mar, a gente indo e vindo. Teve a sensação de um vazio súbito, não ouvia sequer os pássaros nas gaiolas próximas, na barraca de um feirante. Não era homem de chorar, um militar não chora mesmo após ter deixado a farda. Mas seus olhos ficaram miúdos, sua voz mudou, perdeu toda a fanfarronada. Era quase uma voz de criança ao perguntar:
Como pôde acontecer?
Juntou-se aos outros, após recolher o baralho, faltava ainda encontrar Pé-de-Vento. Esse não tinha pouso certo, a não ser às quintas e domingos à tarde, quando invariavelmente brincava na roda de capoeira de Valdemar, na estrada da Liberdade. Fora isso, sua profissão levava-o a distantes lugares. Caçava ratos e sapos para vendê-los aos laboratórios de exames médicos e experiências científicas – o que tornava Pé-de-Vento figura admirada, opinião das mais acatadas. Não era ele um pouco cientista, não conversava com doutores, não sabia palavras difíceis?
Só após muito caminho e vários tragos, deram com ele, embrulhado em seu vasto paletó, como se sentisse frio, resmungando sozinho. Soubera da notícia por outras vias e também ele buscava os amigos. Ao encontrá-los, meteu a mão num dos bolsos. Para retirar um lenço com que enxugar as lágrimas, pensou Curió. Mas das profundezas do bolso Pé-de-Vento extraiu pequena jia verde, polida esmeralda.
Tinha guardado para Quincas, nunca encontrei uma tão bonita.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro-D’Água

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