Dali,
rezei minha ave-mariazinha de de-manhã, enquanto se desalbardava e
amilhava. Outros escovavam os burros e mulas, ou a cangalhada iam
arrumando, a carga toda se pôde resguardar ― quase que ocupou
inteira a casinha do preto. O qual era tão pobre desprevenido,
tivemos até de dar comida a ele e à mulher, e seus filhinhos deles,
quantidade. E notícia nenhuma, de nada, não se achava. A gente ia
ao menos dormir o dia; mas três tinham de sobreficar, de vigias. O
Reinaldo se dizendo ser um deles, eu tive coragem de oferecer também
que ficava; não tinha sono, tudo em mim era nervosia. O rio, objeto
assim a gente observou, com uma crôa de areia amarela, e uma praia
larga! manhãzando, ali estava re-cheio em instância de pássaros. O
Reinaldo mesmo chamou minha atenção. O comum: essas garças,
enfileirantes, de toda brancura; o jaburú; o pato-verde, o
pato-preto, topetudo; marrequinhos dansantes; martim-pescador;
mergulhão; e até uns urubús, com aquele triste preto que mancha.
Mas, melhor de todos ― conforme o Reinaldo disse ― o que é o
passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que
se chama o manuelzinho-da-crôa.
Até
aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando,
por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e
descomeçar dos voos e pousação. Aquilo era para se pegar a
espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: ― E formoso próprio...
― ele me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. Pra e pra,
os bandos de patos se cruzavam. ― Vigia como são esses... Eu
olhava e me sossegava mais. O sol dava dentro do rio, as ilhas
estando claras. ― E aquele lá: lindo! Era o manuelzinho-da-crôa,
sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas
vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos,
peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação.
Machozinho e fêmea ― às vezes davam beijos de biquinquim ― a
galinholagem deles. ― E preciso olhar para esses com um todo
carinho... ― o Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim, botava
surpresa. E a macieza da voz, o bem-querer sem propósito, o
caprichado ser ― e tudo num homem-darmas, brabo bem jagunço ― eu
não entendia! Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava: frouxo, está
aqui um que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo, não. O que
houve, foi um contente meu maior, de escutar aquelas palavras.
Achando que eu podia gostar mais dele. Sempre me lembro. De todos, o
pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o
manuelzinho-da-crôa.
Depois,
conversamos de coisas miúdas sem valor alheio, e eu tive uma
influência para contar artes de minha vida, falar a esmo leve, me
abrir em amáveis, bom. Tudo me comprazia por diante, eu não
necessitava de prolongares. ― Riobaldo... Reinaldo... ― de
repente ele deixou isto em dizer! ― ... Dão par, os nomes de nós
dois... A de dar, palavras essas que se repartiram! para mim, pincho
no em que já estava, de alegria; para ele, um vice-versa de
tristeza. Que por que? Assim eu ainda não sabia. O Reinaldo pitava
muito; não acerto como podia conservar os dentes tão asseados, tão
brancos. Ao em tanto que, também, de pitar se carecia! porque
volta-e-meia abespinhavam a gente os mosquitinhos chupadores, donos
da vazante, uns mosquitinhos dansadinhos, tantos de se desesperar. Eu
fui contando minha existência. Não escondi nada não. Relatei como
tinha acompanhado Zé Bebelo, o foguetório que soltei e o discurso
falado, na Pedra-Branca, o combate dado na beira do Gameleiras, os
pobres presos passando, com as camisas e as caras sujadas de secos
sangues. ― Riobaldo, você é valente... Você é um homem pelo
homem... ― ele no fim falou. Sopesei meu coração, povoado
enchido, se diz; me cri capaz de altos, para toda seriedade certa
proporcionado. E, aí desde aquela hora, conheci que, o Reinaldo,
qualquer coisa que ele falasse, para mim virava sete vezes.
Desculpa
me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo.
Assim é que a velhice faz. Também, o que é que vale e o que é que
não vale? Tudo. Mire veja! sabe por que é que eu não purgo
remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa memória. A luzinha
dos santos-arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu, lembro de
tudo. Teve grandes ocasiões em que eu não podia proceder mal,
aindas que quisesse. Por que? Deus vem, guia a gente por uma légua,
depois larga. Então, tudo resta pior do que era antes. Esta vida é
de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas pêrdas e colheitas.
Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me
entender, me espere.
Aí
nesse mesmo meio-dia, rendidos na vigiação, o Reinaldo e eu não
estávamos com sono, ele foi buscar uma capanga bonita que tinha, com
lavores e três botõezinhos de abotoar. O que nela guardava era
tesoura, tesourinha, pente, espelho, sabão verde, pincel e navalha.
Dependurou o espelho num galho de marmelo-do-mato, acertou seu
cabelo, que já estava cortado baixo. Depois quis cortar o meu. Me
emprestou a navalha, mandou eu fazer a barba, que estava bem
grandeúda. Acontecendo tudo com risadas e ditos amigos ― como
quando com seu arreleque por-escuro uma nhaúma devoou, ou quando eu
pulei para apanhar um raminho de flores e quase caí comprido no
chão, ou quando ouvimos um him de mula, que perto pastava. De estar
folgando assim, e com o cabelo de cidadão, e a cara raspada lisa,
era uma felicidadezinha que eu principiava. Desde esse dia, por
animação, nunca deixei de cuidar de meu estar. O Reinaldo mesmo, no
mais tempo, comprou de alguém uma outra navalha e pincel, me deu,
naquela dita capanga. As vezes, eu tinha vergonha de que me vissem
com peça bordada e historienta; mas guardei aquilo com muita estima.
E o Reinaldo, doutras viagens, me deu outros presentes: camisa de
riscado fino, lenço e par de meia, essas coisas todas. Seja, o
senhor vê: até hoje sou homem tratado. Pessoa limpa, pensa limpo.
Eu acho.
Depois,
o Reinaldo disse: eu fosse lavar corpo, no rio. Ele não ia. Só, por
acostumação, ele tomava banho era sozinho no escuro, me disse, no
sinal da madrugada. Sempre eu sabia tal crendice, como alguns
procediam assim esquisito ― os caborjudos, sujeitos de
corpo-fechado. No que era verdade. Não me espantei. Somente o senhor
tenha: tanto sacrifício, desconforto de se esbarrar nos garranchos,
às tatas na ceguez da noite, não se diferenciando um ái dum êi, e
pelos barrancos, lajes escorregadas e lama atolante, mais o receio de
aranhas caranguejeiras e de cobras! Não, eu não. Mas o Reinaldo me
instruiu aquilo, e me deixou na beira da praia, alegrias do ar em meu
pensamento. Cheguei a encarar a água, o Rio das Velhas passando seu
muito, um rio é sempre sem antiguidade. Cheguei a tirar a roupa. Mas
então notei que estava contente demais de lavar meu corpo porque o
Reinaldo mandasse, e era um prazer fofo e perturbado.
Agançagem!
― eu pensei. Destapei raivas. Tornei a me vestir, e voltei para a
casa do preto; devia de ser hora de se comer a janta e arriar a tropa
para as estradas. Agora o que eu queria era ímpeto de se viajar às
altas e ir muito longe. A ponto que nem queria avistar o Reinaldo.
Estou
contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil,
porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para
se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve
pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem
maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha fiança! homem muito homem
que fui, e homem por mulheres! ― nunca tive inclinação pra aos
vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então ― o
senhor me perguntará ― o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da
vida. Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às
vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não
pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava
dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor! como um feitiço?
Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me
faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu
sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo
não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu
mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que
ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar
todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos
braços, que às vezes adivinhei insensatamente ― tentação dessa
eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos. Conforme,
por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se
encostavam em meu rosto, quando ele cortou meu cabelo. Sempre. Do
demo: Digo? Com que entendimento eu entendia, com que olhos era que
eu olhava? Eu conto. O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram
depois.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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