domingo, 17 de novembro de 2019

Um rio é sempre sem antiguidade

Dali, rezei minha ave-mariazinha de de-manhã, enquanto se desalbardava e amilhava. Outros escovavam os burros e mulas, ou a cangalhada iam arrumando, a carga toda se pôde resguardar ― quase que ocupou inteira a casinha do preto. O qual era tão pobre desprevenido, tivemos até de dar comida a ele e à mulher, e seus filhinhos deles, quantidade. E notícia nenhuma, de nada, não se achava. A gente ia ao menos dormir o dia; mas três tinham de sobreficar, de vigias. O Reinaldo se dizendo ser um deles, eu tive coragem de oferecer também que ficava; não tinha sono, tudo em mim era nervosia. O rio, objeto assim a gente observou, com uma crôa de areia amarela, e uma praia larga! manhãzando, ali estava re-cheio em instância de pássaros. O Reinaldo mesmo chamou minha atenção. O comum: essas garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburú; o pato-verde, o pato-preto, topetudo; marrequinhos dansantes; martim-pescador; mergulhão; e até uns urubús, com aquele triste preto que mancha. Mas, melhor de todos ― conforme o Reinaldo disse ― o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-crôa.
Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos voos e pousação. Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: ― E formoso próprio... ― ele me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. Pra e pra, os bandos de patos se cruzavam. ― Vigia como são esses... Eu olhava e me sossegava mais. O sol dava dentro do rio, as ilhas estando claras. ― E aquele lá: lindo! Era o manuelzinho-da-crôa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea ― às vezes davam beijos de biquinquim ― a galinholagem deles. ― E preciso olhar para esses com um todo carinho... ― o Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim, botava surpresa. E a macieza da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser ― e tudo num homem-darmas, brabo bem jagunço ― eu não entendia! Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava: frouxo, está aqui um que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo, não. O que houve, foi um contente meu maior, de escutar aquelas palavras. Achando que eu podia gostar mais dele. Sempre me lembro. De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa.
Depois, conversamos de coisas miúdas sem valor alheio, e eu tive uma influência para contar artes de minha vida, falar a esmo leve, me abrir em amáveis, bom. Tudo me comprazia por diante, eu não necessitava de prolongares. ― Riobaldo... Reinaldo... ― de repente ele deixou isto em dizer! ― ... Dão par, os nomes de nós dois... A de dar, palavras essas que se repartiram! para mim, pincho no em que já estava, de alegria; para ele, um vice-versa de tristeza. Que por que? Assim eu ainda não sabia. O Reinaldo pitava muito; não acerto como podia conservar os dentes tão asseados, tão brancos. Ao em tanto que, também, de pitar se carecia! porque volta-e-meia abespinhavam a gente os mosquitinhos chupadores, donos da vazante, uns mosquitinhos dansadinhos, tantos de se desesperar. Eu fui contando minha existência. Não escondi nada não. Relatei como tinha acompanhado Zé Bebelo, o foguetório que soltei e o discurso falado, na Pedra-Branca, o combate dado na beira do Gameleiras, os pobres presos passando, com as camisas e as caras sujadas de secos sangues. ― Riobaldo, você é valente... Você é um homem pelo homem... ― ele no fim falou. Sopesei meu coração, povoado enchido, se diz; me cri capaz de altos, para toda seriedade certa proporcionado. E, aí desde aquela hora, conheci que, o Reinaldo, qualquer coisa que ele falasse, para mim virava sete vezes.
Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz. Também, o que é que vale e o que é que não vale? Tudo. Mire veja! sabe por que é que eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa memória. A luzinha dos santos-arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu, lembro de tudo. Teve grandes ocasiões em que eu não podia proceder mal, aindas que quisesse. Por que? Deus vem, guia a gente por uma légua, depois larga. Então, tudo resta pior do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas pêrdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.
Aí nesse mesmo meio-dia, rendidos na vigiação, o Reinaldo e eu não estávamos com sono, ele foi buscar uma capanga bonita que tinha, com lavores e três botõezinhos de abotoar. O que nela guardava era tesoura, tesourinha, pente, espelho, sabão verde, pincel e navalha. Dependurou o espelho num galho de marmelo-do-mato, acertou seu cabelo, que já estava cortado baixo. Depois quis cortar o meu. Me emprestou a navalha, mandou eu fazer a barba, que estava bem grandeúda. Acontecendo tudo com risadas e ditos amigos ― como quando com seu arreleque por-escuro uma nhaúma devoou, ou quando eu pulei para apanhar um raminho de flores e quase caí comprido no chão, ou quando ouvimos um him de mula, que perto pastava. De estar folgando assim, e com o cabelo de cidadão, e a cara raspada lisa, era uma felicidadezinha que eu principiava. Desde esse dia, por animação, nunca deixei de cuidar de meu estar. O Reinaldo mesmo, no mais tempo, comprou de alguém uma outra navalha e pincel, me deu, naquela dita capanga. As vezes, eu tinha vergonha de que me vissem com peça bordada e historienta; mas guardei aquilo com muita estima. E o Reinaldo, doutras viagens, me deu outros presentes: camisa de riscado fino, lenço e par de meia, essas coisas todas. Seja, o senhor vê: até hoje sou homem tratado. Pessoa limpa, pensa limpo. Eu acho.
Depois, o Reinaldo disse: eu fosse lavar corpo, no rio. Ele não ia. Só, por acostumação, ele tomava banho era sozinho no escuro, me disse, no sinal da madrugada. Sempre eu sabia tal crendice, como alguns procediam assim esquisito ― os caborjudos, sujeitos de corpo-fechado. No que era verdade. Não me espantei. Somente o senhor tenha: tanto sacrifício, desconforto de se esbarrar nos garranchos, às tatas na ceguez da noite, não se diferenciando um ái dum êi, e pelos barrancos, lajes escorregadas e lama atolante, mais o receio de aranhas caranguejeiras e de cobras! Não, eu não. Mas o Reinaldo me instruiu aquilo, e me deixou na beira da praia, alegrias do ar em meu pensamento. Cheguei a encarar a água, o Rio das Velhas passando seu muito, um rio é sempre sem antiguidade. Cheguei a tirar a roupa. Mas então notei que estava contente demais de lavar meu corpo porque o Reinaldo mandasse, e era um prazer fofo e perturbado.
Agançagem! ― eu pensei. Destapei raivas. Tornei a me vestir, e voltei para a casa do preto; devia de ser hora de se comer a janta e arriar a tropa para as estradas. Agora o que eu queria era ímpeto de se viajar às altas e ir muito longe. A ponto que nem queria avistar o Reinaldo.
Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha fiança! homem muito homem que fui, e homem por mulheres! ― nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então ― o senhor me perguntará ― o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor! como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente ― tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos. Conforme, por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se encostavam em meu rosto, quando ele cortou meu cabelo. Sempre. Do demo: Digo? Com que entendimento eu entendia, com que olhos era que eu olhava? Eu conto. O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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