domingo, 17 de novembro de 2019

Morte natural

Nós costumamos ligar a ideia de morte natural apenas ao homem, como se as plantas e os animais não morressem naturalmente. E mesmo nas plantas e animais, só nos lembramos disso quando sua morte vem ligada a alguma noção peculiar, gênero morte de elefante que, diz-se, ao se sentir morrer caminha léguas em demanda do cemitério de seus congêneres, onde deita o vasto corpo entre as carcaças familiares e desobjetiva em boas condições.
Só raramente nos lembramos que bichos pequenos também morrem de morte natural. Quando por acaso encontramos sobre uma mesa, ou no chão, uma mosca, hirta, nunca nos vem a ideia de que ela faleceu dentro das regras: isso porque para todo mundo a mosca é um inseto que não morre – é morto. E assim para a grande maioria dos bichinhos. Quem é que vai se lembrar de que uma joaninha pode morrer, ou um mosquitinho, ou uma baratinha de praia, ou uma pulga, ou uma minhoca? São bichos de tal modo submissos aos azares da morte violenta, de tal modo sujeitos a serem comidos por um outro bicho, pisados, batidos, espremidos, dedetizados, que acabam, no consenso do homem, sem direito a morte própria. Daí o espanto que se tem ao ver o raro espetáculo de uma mosca moribunda agitando as patinhas nas vascas da agonia.
Onde será que ficam as centenas de milhares de cadáveres de dípteros, coleópteros, lepidópteros – toda a legião de invertebrados que deve viver morrendo por aí? É curioso como quase não se veem bichinhos mortos, quando eles morrem às pamparras; sim, porque há muitos que vivem horas apenas... Onde ficam as borboletas mortas que eu não as vejo em lugar nenhum, nem mesmo nas matas? Aliás, onde estão as borboletas, que desapareceram dos jardins e parques, que não agitam mais suas asinhas coloridas em torno dos pés de manacá ou por entre o capim alto dos terrenos baldios da cidade? Será que não concordam com o mau-gosto dos objetos feitos com suas asas e em sinal de protesto contra a estultícia do turista consumidor suicidaram-se em massa atirando-se ao mar? De fato, não há mais borboletas. A última que vi era uma grande borboleta amarela num livro de crônicas de Rubem Braga...
Um dia, passeando nos terrenos de um castelo inglês cerca de Oxford - era uma tarde dourada de folhas de outono - ouvi no ar um estranho grito, um som agudo e horrível, entre espasmo e canto. Olhei para cima e vi um passarinho cumprir, num derradeiro estertor de vida, sua última parábola ascendente. Ele subiu até onde pôde e depois caiu a prumo, quase aos meus pés. Peguei-o. Suas plumas foram ainda por algum tempo doces e quentes na minha mão em concha.
Vinicius de Moraes, in Prosa

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