Nós
costumamos ligar a ideia de morte natural apenas ao homem, como se as
plantas e os animais não morressem naturalmente. E mesmo nas plantas
e animais, só nos lembramos disso quando sua morte vem ligada a
alguma noção peculiar, gênero morte de elefante que, diz-se, ao se
sentir morrer caminha léguas em demanda do cemitério de seus
congêneres, onde deita o vasto corpo entre as carcaças familiares e
desobjetiva em boas condições.
Só
raramente nos lembramos que bichos pequenos também morrem de morte
natural. Quando por acaso encontramos sobre uma mesa, ou no chão,
uma mosca, hirta, nunca nos vem a ideia de que ela faleceu dentro das
regras: isso porque para todo mundo a mosca é um inseto que não
morre – é morto. E assim para a grande maioria dos bichinhos. Quem
é que vai se lembrar de que uma joaninha pode morrer, ou um
mosquitinho, ou uma baratinha de praia, ou uma pulga, ou uma minhoca?
São bichos de tal modo submissos aos azares da morte violenta, de
tal modo sujeitos a serem comidos por um outro bicho, pisados,
batidos, espremidos, dedetizados, que acabam, no consenso do homem,
sem direito a morte própria. Daí o espanto que se tem ao ver o raro
espetáculo de uma mosca moribunda agitando as patinhas nas vascas da
agonia.
Onde
será que ficam as centenas de milhares de cadáveres de dípteros,
coleópteros, lepidópteros – toda a legião de invertebrados que
deve viver morrendo por aí? É curioso como quase não se veem
bichinhos mortos, quando eles morrem às pamparras; sim, porque há
muitos que vivem horas apenas... Onde ficam as borboletas mortas que
eu não as vejo em lugar nenhum, nem mesmo nas matas? Aliás, onde
estão as borboletas, que desapareceram dos jardins e parques, que
não agitam mais suas asinhas coloridas em torno dos pés de manacá
ou por entre o capim alto dos terrenos baldios da cidade? Será que
não concordam com o mau-gosto dos objetos feitos com suas asas e em
sinal de protesto contra a estultícia do turista consumidor
suicidaram-se em massa atirando-se ao mar? De fato, não há mais
borboletas. A última que vi era uma grande borboleta amarela num
livro de crônicas de Rubem Braga...
Um
dia, passeando nos terrenos de um castelo inglês cerca de Oxford -
era uma tarde dourada de folhas de outono - ouvi no ar um estranho
grito, um som agudo e horrível, entre espasmo e canto. Olhei para
cima e vi um passarinho cumprir, num derradeiro estertor de vida, sua
última parábola ascendente. Ele subiu até onde pôde e depois caiu
a prumo, quase aos meus pés. Peguei-o. Suas plumas foram ainda por
algum tempo doces e quentes na minha mão em concha.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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