quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Nós vamo pra lá, não vamo?

Dois homens, vestindo calças de algodão e camisas azuis suadas, surgiram de entre os salgueiros e viram os homens nus.
Que tal o banho? Dá pra nadar? — perguntaram.
Não sei — disse Tom. — A gente não experimentou. Mas pra ficar sentado, é do outro mundo.
Podemo ir também?
Ora, o rio não é nosso. Podemo ceder um pedacinho pra vocês.
Os homens tiraram as calças e as camisas e foram andando rio adentro. Poeira cobria-lhes as pernas até os joelhos; seus pés eram pálidos e amolecidos pelo suor. Sentaram-se preguiçosamente na água e começaram a lavar as coxas. Queimados de sol, ambos, pai e filho, grunhiam e rugiam na água.
O pai perguntou com polidez:
Vão também pro Oeste?
Nããão. A gente vem de lá. Vamo é pra casa. Não se pode ganhar a vida ali.
Onde é que é a casa de ocês? — perguntou Tom.
No “Cabo de Frigideira”, perto de Pampa.
Pai perguntou:
E lá vocês podem ganhar a vida.
Não. Mas é melhor passar fome em casa, perto da gente conhecida. Nada de morrer de fome no meio duma gente que nos odeia.
O pai disse:
Sabe, você é o segundo que me diz isso. Por que é que eles têm raiva de gente de fora?
Sei lá — disse o homem. Encheu as mãos de água e esfregou o rosto, fungando e gargarejando. A água suja escorreu de seus cabelos e rolou pelo seu pescoço.
Gostava de ouvir mais alguma coisa sobre isso — disse o pai.
Eu também — disse Tom. — Por que é que esse pessoal do Oeste tem ódio da gente?
O homem encarou Tom firmemente.
Vocês vão pro Oeste?
É, tamo indo pra lá.
Nunca foram na Califórnia?
Não, nunca.
Bom, então não se incomodem com o que eu disse. Tratem de ver tudo pessoalmente.
Tá — disse Tom —, mas sempre a gente gosta de saber como é a vida num lugar pra onde a gente vai.
Bom, se vocês querem saber mesmo... eu sou um desses que perguntou muito a respeito disso e pensou muito também. A Califórnia é uma terra bonita. Mas ela foi roubada, faz uma porção de tempo. Quando vocês passar o deserto, vão chegar nas cercania de Vinhedo e pomar por toda parte... uma beleza, mesmo. E vocês vão passar por uma terra plana e rica, com água a um metro no fundo. E esses campos tão abandonados. Mas vocês não terão nada deles. Pertence tudo à companhia que negocia com as terras e o gado. E quando ela não quer cultivar a terra, deixa ela simplesmente abandonada. Mas tenta só ir pra lá e querer plantar qualquer coisa para vocês mesmo! Vão é direitinho pra cadeia.
Terras boas, diz você? E ninguém planta nelas?
Sim, senhor. É isso mesmo. E quando vocês ver isso, vão ficar danados, e ainda não viram nada. Aquela gente tem um olhar que faz o sangue da gente ferver nas veia. E eles olham pra ocês e dizem: não gosto de você, seu filho da puta. Depois vem o pessoal do xerife e vocês são perseguidos. Vocês acampam em qualquer lugar na beira da estrada, e eles mandam vocês embora. Basta olhar na cara deles, e se vê a raiva que eles têm da gente. E... vou dizer uma coisa: eles têm raiva de vocês porque têm medo. Sabem que quando alguém tá com fome arranja comida de qualquer jeito, mesmo que tenha que roubar. Sabem que deixar as terra abandonada é um pecado, e que alguém vai logo tratar de tomar elas. Diabos! Ninguém ainda chamou vocês de Okies?
Okie? Que quer dizer isso? — perguntou Tom.
Bom, Okie era antigamente aquele que vinha de Oklahoma. Agora é a mesma coisa que chamar alguém de filho da puta. Okie quer dizer que o sujeito é um merda. A palavra mesmo não quer dizer nada; o que dá raiva é a maneira como eles dizem ela. Mas não vale a pena falar. Vocês precisam ver isso pessoalmente. Têm que ir pra lá. Ouvi dizer que agora tem lá umas trezentas mil pessoas, da nossa região, gente que vive que nem porco, porque tudo na Califórnia tem dono. Não sobra mais coisa nenhuma. E os donos disso tudo se agarram às suas coisas como quê! São capaz até de matar. Têm medo, é por isto. Vocês vão ver, vão ouvir o que eles dizem por lá. Uma terra bonita como o diabo, mas o povo de lá é danado de ruim. Tem tanto medo que desconfia até da sua própria gente.
Tom olhou a água e enterrou os calcanhares na areia.
Mas se alguém trabalha e faz economias pode comprar um pedacinho de terra, não pode?
O homem mais idoso riu e olhou para o filho, e seu filho, calado, arreganhou os dentes com uma expressão quase triunfal. E o homem idoso disse:
Vocês não vão arranjar nenhum trabalho certo. Vão ter que arrumar dia a dia o dinheiro pra comida. E vão precisar trabalhar pra uma gente mesquinha como o diabo. Se apanharem algodão, podem estar certos de que a balança vai tá viciada. Pode ser que nem sempre aconteça, mas em geral é assim. E vocês vão estar crentes de que todas as balanças roubam e ficam sempre desconfiados. E não vão poder fazer nada, mas nada mesmo.
O pai perguntou em voz baixa:
Então... então não é nada bom aquilo ali?
É bom, muito bonito tudo aquilo, mas a gente não consegue nada. Tem por exemplo um pomar cheio de laranjas maduras... e um sujeito armado de revólver que dá um tiro no primeiro que mexer nelas. E tem um sujeito, dono de um jornal, lá perto da costa, que tem meio milhão de hectares de terra...
Casy ergueu a cabeça bruscamente.
Meio milhão de hectares?! Que diabo um homem faz com tanta terra assim?
Sei lá. Sei que ele é dono daquilo tudo, e pronto. Tá criando algum gado e tem guardas armados por toda parte, que é pra ninguém entrar nas terras dele. E anda num carro à prova de bala. Já vi retratos dele. Um sujeito mole e gordo, com olhinhos pequenos e uma boca que parece o olho do cu. Tem um medo de morrer que se pela. Meio milhão de hectares, e com medo da morte!
Mas que diabo ele faz com tanta terra? Pra que é que ele quer meio milhão de hectares? — perguntou Casy.
O homem tirou as mãos embranquecidas e murchas da água e esticou-as, e depois repuxou o lábio inferior e deitou a cabeça sobre um dos ombros.
Eu não sei — disse. — Talvez seja maluco. Tem que ser um maluco. Eu vi o retrato dele, é do tipo maluco. Maluco e ordinário.
Você diz que ele tem medo de morrer? — perguntou Casy.
É, é o que o povo conta.
Tem medo de que Deus venha buscar ele?
Não sei. Só sei que ele tem medo.
Mas por quê? — perguntou o pai. — Viver assim não tem graça nenhuma...
O avô não tinha medo — disse Tom. — Ele achava mais graça justamente quando tava mais perto da morte. Por exemplo, quando o avô e um outro sujeito caíram em cima de um bando de índios navajos, numa noite. Foi quando eles mais se divertiram na vida, e ninguém dava um níquel pela vida deles.
Sim, assim é que deve ser — disse Casy. — Quando alguém acha graça, nas coisas, nem pensa na morte; mas quando alguém se sente sozinho, e velho, e desconsolado... aí tem medo de morrer.
Mas por que é que ele ia ficar desconsolado, tendo meio milhão de hectares? — perguntou pai.
O pregador sorriu e fez uma expressão de perplexidade. Afastou com as mãos um inseto que flutuava na correnteza.
Se ele precisa de meio milhão de hectares pra se sentir rico é porque ele se sente interiormente danado de pobre, e se ele se sente pobre por dentro, não é meio milhão de hectares que vai fazê-lo sentir-se rico, e talvez é por isto que ele está desconsolado: não pode fazer nada para se sentir rico, como a senhora Wilson se sentiu quando cedeu a sua tenda onde o avô morreu. Eu não quero fazer sermões, mas nunca vi alguém que passasse a vida inteira a juntar e juntar que não se sentisse, no fundo, desconsolado e desapontado. — Ele riu. — Soa como um sermão, mesmo, não é?
O sol lançava agora raios ardentes. O pai disse:
Acho melhor a gente se meter mais debaixo da água. Esse sol pode derreter a alma da gente. — E ele se reclinou e deixou satisfeito que a correnteza suave lhe afagasse o pescoço. — Mas quando se quer trabalhar de verdade, a gente arruma trabalho, né?
O homem eriçou o busto e encarou-o:
Escuta aqui, seu. Eu também não posso saber de tudo. Talvez você chegue e encontre logo um serviço permanente, e aí eu passava por mentiroso. Talvez não encontre nada, e aí fui eu quem não avisou nada. Só posso te dizer o seguinte: a maioria das pessoas que tá lá passa mal como o diabo. — Ajeitou-se novamente na água. — Ninguém é obrigado a saber de tudo — repetiu.
O pai virou a cabeça e olhou para tio John.
Cê foi sempre um camarada pouco falador — disse o pai. — Mas o diabo me leve se ocê já disse mais que duas palavras desde que saímo de casa. Que é que ocê pensa disso tudo, afinal?
Tio John teve uma expressão sombria.
Não penso nada sobre isso. Nós vamo pra lá, não vamo? Não adianta dizer nada, porque nós vamo, mesmo. Quando chegar, chegou. Se a gente arranjar trabalho, trabalha; se não, ficamo sentados no rabo. Toda essa falação não dianta nada.
Tom reclinou-se na água, deixou que a água lhe enchesse a boca, soprou-a para o ar e riu.
Tio John não fala muito, mas o que diz é uma verdade. Sim, senhor! Fala que nem um livro. Vamos continuar hoje de noite mesmo, hem, pai?
Acho que sim. Melhor é acabar com isso duma vez.
Bom, então agora eu vou me deitar um pouco.
Tom ergueu-se e chapinhou até a margem arenosa. Vestiu a roupa sobre o corpo molhado e fez uma careta, pois que o sol esquentara muito suas vestes. Os outros seguiram-no. O homem e seu filho continuaram sentados na água, vendo os Joad se afastarem. E o filho disse:
Só quero ver eles daqui a seis meses. Meu Deus do céu!
O homem limpou os cantos dos olhos com o indicador.
Eu não devia ter feito isso — disse. — Mas a gente tá sempre com vontade de mostrar esperteza, e fica avisando as pessoas!
Bom, pai!... Eles perguntaram, né.
É, eu sei. Mas o homem não diss’que iam de qualquer jeito? Não adiantou nada contar a verdade. Assim foi pior, pois eles vão se sentir mais abatidos ainda.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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