Dois
homens, vestindo calças de algodão e camisas azuis suadas, surgiram
de entre os salgueiros e viram os homens nus.
— Que
tal o banho? Dá pra nadar? — perguntaram.
— Não
sei — disse Tom. — A gente não experimentou. Mas pra ficar
sentado, é do outro mundo.
— Podemo
ir também?
— Ora,
o rio não é nosso. Podemo ceder um pedacinho pra vocês.
Os
homens tiraram as calças e as camisas e foram andando rio adentro.
Poeira cobria-lhes as pernas até os joelhos; seus pés eram pálidos
e amolecidos pelo suor. Sentaram-se preguiçosamente na água e
começaram a lavar as coxas. Queimados de sol, ambos, pai e filho,
grunhiam e rugiam na água.
O
pai perguntou com polidez:
— Vão
também pro Oeste?
— Nããão.
A gente vem de lá. Vamo é pra casa. Não se pode ganhar a vida ali.
— Onde
é que é a casa de ocês? — perguntou Tom.
— No
“Cabo de Frigideira”, perto de Pampa.
Pai
perguntou:
— E
lá vocês podem ganhar a vida.
— Não.
Mas é melhor passar fome em casa, perto da gente conhecida. Nada de
morrer de fome no meio duma gente que nos odeia.
O
pai disse:
— Sabe,
você é o segundo que me diz isso. Por que é que eles têm raiva de
gente de fora?
— Sei
lá — disse o homem. Encheu as mãos de água e esfregou o rosto,
fungando e gargarejando. A água suja escorreu de seus cabelos e
rolou pelo seu pescoço.
— Gostava
de ouvir mais alguma coisa sobre isso — disse o pai.
— Eu
também — disse Tom. — Por que é que esse pessoal do Oeste tem
ódio da gente?
O
homem encarou Tom firmemente.
— Vocês
vão pro Oeste?
— É,
tamo indo pra lá.
— Nunca
foram na Califórnia?
— Não,
nunca.
— Bom,
então não se incomodem com o que eu disse. Tratem de ver tudo
pessoalmente.
— Tá
— disse Tom —, mas sempre a gente gosta de saber como é a vida
num lugar pra onde a gente vai.
— Bom,
se vocês querem saber mesmo... eu sou um desses que perguntou muito
a respeito disso e pensou muito também. A Califórnia é uma terra
bonita. Mas ela foi roubada, faz uma porção de tempo. Quando vocês
passar o deserto, vão chegar nas cercania de Vinhedo e pomar por
toda parte... uma beleza, mesmo. E vocês vão passar por uma terra
plana e rica, com água a um metro no fundo. E esses campos tão
abandonados. Mas vocês não terão nada deles. Pertence tudo à
companhia que negocia com as terras e o gado. E quando ela não quer
cultivar a terra, deixa ela simplesmente abandonada. Mas tenta só ir
pra lá e querer plantar qualquer coisa para vocês mesmo! Vão é
direitinho pra cadeia.
— Terras
boas, diz você? E ninguém planta nelas?
— Sim,
senhor. É isso mesmo. E quando vocês ver isso, vão ficar danados,
e ainda não viram nada. Aquela gente tem um olhar que faz o sangue
da gente ferver nas veia. E eles olham pra ocês e dizem: não gosto
de você, seu filho da puta. Depois vem o pessoal do xerife e vocês
são perseguidos. Vocês acampam em qualquer lugar na beira da
estrada, e eles mandam vocês embora. Basta olhar na cara deles, e se
vê a raiva que eles têm da gente. E... vou dizer uma coisa: eles
têm raiva de vocês porque têm medo. Sabem que quando alguém tá
com fome arranja comida de qualquer jeito, mesmo que tenha que
roubar. Sabem que deixar as terra abandonada é um pecado, e que
alguém vai logo tratar de tomar elas. Diabos! Ninguém ainda chamou
vocês de Okies?
— Okie?
Que quer dizer isso? — perguntou Tom.
— Bom,
Okie era antigamente aquele que vinha de Oklahoma. Agora é a mesma
coisa que chamar alguém de filho da puta. Okie quer dizer que o
sujeito é um merda. A palavra mesmo não quer dizer nada; o que dá
raiva é a maneira como eles dizem ela. Mas não vale a pena falar.
Vocês precisam ver isso pessoalmente. Têm que ir pra lá. Ouvi
dizer que agora tem lá umas trezentas mil pessoas, da nossa região,
gente que vive que nem porco, porque tudo na Califórnia tem dono.
Não sobra mais coisa nenhuma. E os donos disso tudo se agarram às
suas coisas como quê! São capaz até de matar. Têm medo, é por
isto. Vocês vão ver, vão ouvir o que eles dizem por lá. Uma terra
bonita como o diabo, mas o povo de lá é danado de ruim. Tem tanto
medo que desconfia até da sua própria gente.
Tom
olhou a água e enterrou os calcanhares na areia.
— Mas
se alguém trabalha e faz economias pode comprar um pedacinho de
terra, não pode?
O
homem mais idoso riu e olhou para o filho, e seu filho, calado,
arreganhou os dentes com uma expressão quase triunfal. E o homem
idoso disse:
— Vocês
não vão arranjar nenhum trabalho certo. Vão ter que arrumar dia a
dia o dinheiro pra comida. E vão precisar trabalhar pra uma gente
mesquinha como o diabo. Se apanharem algodão, podem estar certos de
que a balança vai tá viciada. Pode ser que nem sempre aconteça,
mas em geral é assim. E vocês vão estar crentes de que todas as
balanças roubam e ficam sempre desconfiados. E não vão poder fazer
nada, mas nada mesmo.
O
pai perguntou em voz baixa:
— Então...
então não é nada bom aquilo ali?
— É
bom, muito bonito tudo aquilo, mas a gente não consegue nada. Tem
por exemplo um pomar cheio de laranjas maduras... e um sujeito armado
de revólver que dá um tiro no primeiro que mexer nelas. E tem um
sujeito, dono de um jornal, lá perto da costa, que tem meio milhão
de hectares de terra...
Casy
ergueu a cabeça bruscamente.
— Meio
milhão de hectares?! Que diabo um homem faz com tanta terra assim?
— Sei
lá. Sei que ele é dono daquilo tudo, e pronto. Tá criando algum
gado e tem guardas armados por toda parte, que é pra ninguém entrar
nas terras dele. E anda num carro à prova de bala. Já vi retratos
dele. Um sujeito mole e gordo, com olhinhos pequenos e uma boca que
parece o olho do cu. Tem um medo de morrer que se pela. Meio milhão
de hectares, e com medo da morte!
— Mas
que diabo ele faz com tanta terra? Pra que é que ele quer meio
milhão de hectares? — perguntou Casy.
O
homem tirou as mãos embranquecidas e murchas da água e esticou-as,
e depois repuxou o lábio inferior e deitou a cabeça sobre um dos
ombros.
— Eu
não sei — disse. — Talvez seja maluco. Tem que ser um maluco. Eu
vi o retrato dele, é do tipo maluco. Maluco e ordinário.
— Você
diz que ele tem medo de morrer? — perguntou Casy.
— É,
é o que o povo conta.
— Tem
medo de que Deus venha buscar ele?
— Não
sei. Só sei que ele tem medo.
— Mas
por quê? — perguntou o pai. — Viver assim não tem graça
nenhuma...
— O
avô não tinha medo — disse Tom. — Ele achava mais graça
justamente quando tava mais perto da morte. Por exemplo, quando o avô
e um outro sujeito caíram em cima de um bando de índios navajos,
numa noite. Foi quando eles mais se divertiram na vida, e ninguém
dava um níquel pela vida deles.
— Sim,
assim é que deve ser — disse Casy. — Quando alguém acha graça,
nas coisas, nem pensa na morte; mas quando alguém se sente sozinho,
e velho, e desconsolado... aí tem medo de morrer.
— Mas
por que é que ele ia ficar desconsolado, tendo meio milhão de
hectares? — perguntou pai.
O
pregador sorriu e fez uma expressão de perplexidade. Afastou com as
mãos um inseto que flutuava na correnteza.
— Se
ele precisa de meio milhão de hectares pra se sentir rico é porque
ele se sente interiormente danado de pobre, e se ele se sente pobre
por dentro, não é meio milhão de hectares que vai fazê-lo
sentir-se rico, e talvez é por isto que ele está desconsolado: não
pode fazer nada para se sentir rico, como a senhora Wilson se sentiu
quando cedeu a sua tenda onde o avô morreu. Eu não quero fazer
sermões, mas nunca vi alguém que passasse a vida inteira a juntar e
juntar que não se sentisse, no fundo, desconsolado e desapontado. —
Ele riu. — Soa como um sermão, mesmo, não é?
O
sol lançava agora raios ardentes. O pai disse:
— Acho
melhor a gente se meter mais debaixo da água. Esse sol pode derreter
a alma da gente. — E ele se reclinou e deixou satisfeito que a
correnteza suave lhe afagasse o pescoço. — Mas quando se quer
trabalhar de verdade, a gente arruma trabalho, né?
O
homem eriçou o busto e encarou-o:
— Escuta
aqui, seu. Eu também não posso saber de tudo. Talvez você chegue e
encontre logo um serviço permanente, e aí eu passava por mentiroso.
Talvez não encontre nada, e aí fui eu quem não avisou nada. Só
posso te dizer o seguinte: a maioria das pessoas que tá lá passa
mal como o diabo. — Ajeitou-se novamente na água. — Ninguém é
obrigado a saber de tudo — repetiu.
O
pai virou a cabeça e olhou para tio John.
— Cê
foi sempre um camarada pouco falador — disse o pai. — Mas o diabo
me leve se ocê já disse mais que duas palavras desde que saímo de
casa. Que é que ocê pensa disso tudo, afinal?
Tio
John teve uma expressão sombria.
— Não
penso nada sobre isso. Nós vamo pra lá, não vamo? Não adianta
dizer nada, porque nós vamo, mesmo. Quando chegar, chegou. Se a
gente arranjar trabalho, trabalha; se não, ficamo sentados no rabo.
Toda essa falação não dianta nada.
Tom
reclinou-se na água, deixou que a água lhe enchesse a boca,
soprou-a para o ar e riu.
— Tio
John não fala muito, mas o que diz é uma verdade. Sim, senhor! Fala
que nem um livro. Vamos continuar hoje de noite mesmo, hem, pai?
— Acho
que sim. Melhor é acabar com isso duma vez.
— Bom,
então agora eu vou me deitar um pouco.
Tom
ergueu-se e chapinhou até a margem arenosa. Vestiu a roupa sobre o
corpo molhado e fez uma careta, pois que o sol esquentara muito suas
vestes. Os outros seguiram-no. O homem e seu filho continuaram
sentados na água, vendo os Joad se afastarem. E o filho disse:
— Só
quero ver eles daqui a seis meses. Meu Deus do céu!
O
homem limpou os cantos dos olhos com o indicador.
— Eu
não devia ter feito isso — disse. — Mas a gente tá sempre com
vontade de mostrar esperteza, e fica avisando as pessoas!
— Bom,
pai!... Eles perguntaram, né.
— É,
eu sei. Mas o homem não diss’que iam de qualquer jeito? Não
adiantou nada contar a verdade. Assim foi pior, pois eles vão se
sentir mais abatidos ainda.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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