domingo, 3 de novembro de 2019

México Florido e Espinhoso

Meu governo me mandava ao México. Cheio dessa opressão mortal produzida por tanto sofrimento e desordem, cheguei no ano de 1940 ao pequeno planalto de Anahuac respirando o que Alfonso Reyes dizia ser a região mais transparente de ar.
México, com seu nopal e sua serpente, México florido e espinhoso, seco e tempestuoso, violento de desenho e de cor, violento de erupção e criação, cobriu-me com seu sortilégio e sua luz espantosa.
Percorri-o por anos inteiros de mercado a mercado. Porque o México está nos mercados, não está nas guturais canções dos filmes nem na falsa vulgaridade de bigode e pistola, O México é uma terra de grandes mantas cor de carmim e turquesa fosforescente. O México é uma terra de vasilhas e cântaros e de frutas cortadas debaixo de um enxame de insetos. O México é um campo infinito de magueis de tintura azul-cobalto e coroa de espinhos amarelos.
Tudo isto os mercados mais belos do mundo dão a ele. A fruta e a lã, o barro e os teares, mostram o poderio assombroso dos dedos mexicanos, fecundos e eternos.
Vaguei pelo México, percorri a sua costa toda, sua alta costa alcantilada, incendiada por um perpétuo relâmpago fosfórico. Desde Topolobambo em Sinaloa, desci por esses nomes hemisféricos, ásperos nomes que os deuses deixaram de herança ao México quando em seu território os homens, menos cruéis que os deuses, começaram a mandar. Andei por todas essas sílabas de mistério e esplendor e por esses sons primordiais. Sonora e Yucatán, Anahuac que se ergue como um braseiro frio de onde chegam todos os confusos aromas desde Nayarit até Minhoacan, desde onde se percebe a fumaça da pequena ilha de Janitzio e o olor de maís maguei que sobe por Jalisco e o enxofre do novo vulcão de Paricutín juntando-se à umidade fragrante dos peixes do lago de Pátzcuaro. México, o último dos países mágicos, mágico de antigui-dade e de história, mágico de música e de geografia. Fazendo meu caminho de vagabundo por essas pedras açoitadas pelo sangue perene, entrecruzadas por um largo fio de sangue e de musgo, senti-me imenso e antigo, digno de andar entre tantas criações imemoriais. Vales abruptos interrompidos por paredes de rocha; colinas elevadas se alternam, recortadas rente como por uma faca; Imensas selvas tropicais, ferventes de madeira e de serpentes, de pássaros e de lendas. Naquele vasto território habitado até seus últimos confins pela luta do homem no tempo, em seus grandes espaços descobri que éramos, Chile e México, os países antípodas da América. Nunca me comoveu a convencional frase diplomática que faz com que o embaixador do Japão ache nas cerejeiras do Chile, como o inglês em nosso nevoeiro da costa, como o argentino ou o alemão em nossa neve circundante, ache que somos parecidos, muito parecidos com todos os países. Alegra-me a diversidade da terra, a fruta terrestre diferenciada em todas as latitudes. Não estou depreciando o México, o país amado, considerando-o o mais distante de nosso país oceânico e cereal, mas destaco suas diferenças para que nossa América ostente todos os seus aspectos, suas alturas e suas profundidades. E não há na América nem talvez no planeta, país de maior profundidade humana que o México e seus homens. Através de seus acertos luminosos como através de seus erros gigantescos vê-se a mesma cadeia de generosidade grandiosa, de vitalidade profunda, de inesgotável história, de germinação interminável.
Pelas aldeias de pescadores, onde a rede se faz tão diáfana que parece uma grande mariposa que retorna às águas para adquirir as escamas de prata que lhe faltam, por seus centros mineiros em que o metal, logo depois de extraído, converte-se de duro lingote em geometria esplendorosa, pelas rotas de onde surgem os conventos católicos espessos e espinhosos como cactos colossais, pelos mercados onde a hortaliça é apresentada como uma flor e onde a riqueza de cores e sabores chega ao paroxismo, desviamo-nos um dia até que, atravessando o México, chegamos a Yucatán, berço submerso da mais antiga fenda do mundo, do idolátrico Mayab. Ali a terra está sacudida pela história e pelo sêmen. Junto à fibra do henequém crescem ainda as ruínas cheias de inteligência e de sacrifícios.
Quando se cruzam os últimos caminhos, chegamos ao imenso território onde os antigos mexicanos deixaram sua ornamentada história escondida entre a selva. Ali encontramos uma nova espécie de água, a mais misteriosa das águas terrestres. Não é o mar nem é o arroio, nem o rio nem nada das águas conhecidas. Em Yucatán não há água senão debaixo da terra e esta se racha subitamente, produzindo poços enormes e selvagens cujas encostas cheias de vegetação tropical deixam ver no fundo uma água profundíssima verde e zenital. Os maias encontraram estas aberturas terrestres chamadas cenotes e as divinizaram com seus estranhos ritos. Como em todas as religiões, no princípio consagraram à necessidade e à fecundidade, e naquela terra a aridez foi vencida por essas águas escondidas para as quais a terra se abria.
Então sobre os cenotes sagrados, por milhares de anos, as religiões primitivas e invasoras aumentaram o mistério da água misteriosa. Nas margens do cenote centenas de virgens condecoradas pela flora e pelo ouro, depois de cerimônias nupciais, foram cobertas de joias e precipitadas do alto para as águas correntes e insondáveis. Das profundezas subiam até à superfície as flores e as coroas das virgens mas elas permaneciam no lodo do solo remoto, presas por suas cadeias de ouro.
As joias, uma ínfima parte delas, foram resgatadas depois de milhares de anos e estão atrás das vitrinas dos museus do México e da América do Norte. Mas eu, ao entrar nessa solidão, não busquei o ouro mas sim o grito das donzelas afogadas. Parecia-me ouvir nos estranhos grasnidos dos pássaros a rouca agonia das virgens; e, no voo veloz com que cruzavam a majestade tenebrosa da água imemorial, adivinhava as mãos exangues das jovens mortas.
Sobre a estátua que alongava a mão de pedra clara sobre a água e o ar eternos, vi uma vez pousar uma pomba. Não sei que águia a perseguiria. Destoava naquele recinto em que as únicas aves, o atajacaminos de voz trêmula, o quetzal de plumagem fabulosa, o colibri de turquesa e as aves de rapina, conquistavam a selva para sua carnificina e seu esplendor. A pomba pousou na mão da estátua, branca como uma gota de neve sobre as pedras tropicais. Olhei-a porque vinha de outro mundo, de um mundo medido e harmônico, de uma coluna pitagórica ou de um número mediterrâneo. Deteve-se na margem das trevas, aceitou meu silêncio quando eu mesmo já pertencia a esse mundo original, americano, sangrento e antigo, e voou diante de meus olhos até perder-se no céu.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário