LINGUAGEM
é a terceira utilidade que a natureza põe à disposição do homem.
A natureza é o veículo do pensamento, e em nível triplo.
1.
As palavras são signos de fenômenos naturais.
2.
Certos fenômenos naturais são símbolos de certos fenômenos
espirituais.
3.
A natureza é o símbolo do espírito.
1.
As palavras são signos de fenômenos naturais.
Recorrer
à história natural há de nos ajudar na história sobrenatural;
recorrer à criação exterior nos dará uma linguagem para as
entidades e transformações da criação interior. Cada palavra
utilizada para expressar um fato moral ou intelectual, se delineada
desde sua raiz, baseia-se em um empréstimo feito a alguma
manifestação natural.
Direito
quer dizer reto; errado quer dizer torto.
Espírito é essencialmente vento; transgressão
é o cruzamento de uma linha; supercílio é o levantar
da sobrancelha. Dizemos coração para expressar a
emoção, cabeça para denotar o pensamento; e
pensamento e emoção são palavras tomadas às coisas
sensíveis e atribuídas à natureza espiritual. A maior parte do
processo pelo qual se cumpre essa transformação foi ocultado de nós
nos remotos tempos da formação da linguagem; mas a mesma tendência
pode ser observada diariamente nas crianças. As crianças e os
selvagens usam apenas substantivos ou nomes, que convertem em verbos
e aplicam aos atos mentais análogos a essas mesmas coisas.
2.
Mas essa origem de todas as vozes que transmitem um significado
espiritual – fato tão conspícuo da história das línguas –
é a menor das dúvidas que temos da natureza. Não apenas as
palavras são emblemáticas: as coisas mesmas o são. Cada fenômeno
natural é um símbolo de um fenômeno espiritual. Cada manifestação
da natureza corresponde a um estado da mente, e a esse estado da
mente só podemos descrever apresentando sua manifestação natural
como sua imagem. Um homem enfurecido é um leão, um homem astuto é
uma raposa, um firme é uma rocha ou um sábio é uma luz. O cordeiro
é a inocência; a serpente, o insidioso rancor; as flores expressam
para nós as afeições delicadas. Luz e escuridão são nossa forma
habitual de nos referir ao saber e à ignorância; o ardor, nossa
expressão usual da paixão amorosa. A distância que divisamos atrás
de nós e a que divisamos adiante são, respectivamente, nossas
imagens de lembrança e esperança.
Quem,
ao observar a corrente de um rio, não relembra o fluir de todas as
coisas? Lança nele uma pedra, e os círculos que se propagam são o
belo modelo de toda influência.
O
homem é consciente de uma alma universal que está dentro ou por
trás de sua vida individual, de onde as essências da Justiça, da
Verdade, do Amor e da Libertade surgem e brilham como em um
firmamento. Esta Alma Universal – que não é minha, nem vossa, nem
daquele outro, senão que nós somos dela, somos sua propriedade e
seus hóspedes – ele chama Razão. E o céu azul em que a terra de
cada qual está enterrada, o céu com sua calma eterna e seus orbes
perpétuos, é o modelo da Razão. Aquilo que, intelectualmente
considerado, chamamos Razão, se considerado em relação à
natureza, chamamos Espírito.
O
Espírito é o Criador. O Espírito porta consigo a vida. E em todas
as épocas e países, o homem o incorporou em sua linguagem como o
PAI.
Vê-se
facilmente que essas analogias nada têm de felizes ou caprichosas,
senão que são constantes e impregnam a natureza. Não são sonhos
de uns poucos poetas, dispersos aqui e ali, senão que o homem é um
analogista e estuda as relações em todos os objetos. Localizado no
centro dos seres, um raio de relação o une com todos eles.
E
não é possível com prender ao homem sem esses objetos, nem a esses
objetos sem o homem. Tomado em si mesmo, nenhum fenômeno da história
natural tem valor, é estéril como um só sexo; mas case-o com a
história humana, e se preencherá de vida. Floras inteiras, todos os
volumes de Lineu e Buffon, são áridos catálogos de acontecimentos
naturais; mas o mais trivial destes acontecimentos, os hábitos de
uma planta, os órgãos de um inseto ou o trabalho que realiza ou o
ruído que emite, empregados para ilustrar um feito da filosofia
intelectual ou de algum modo associados com a natureza humana,
afetam-nos de uma maneira intensa e gratificante. A semente de uma
planta, – a que comoventes analogias com a natureza do homem já
não deu lugar esse pequeno fruto em todo tipo de discursos, até
chegar à voz de Paulo, que compara o cadáver do homem com uma
semente – “semeia-se um corpo natural, ressuscita um corpo
espiritual.” O ao ano; essas são quantidades certas de luz e calor
elementares; porém, não há acaso na intenção de uma analogia
entre a vida do homem e as estações? E não extraem as estações
grandeza ou pathos dessa analogia? Os instintos da formiga têm muito
pouca importância, considerados como coisa de formiga; mas enquanto
um raio de relação parte dela e alcança o homem, a pequena escrava
é vista como uma atleta de corpo pequeno e grande coração, e todos
os seus hábitos (inclusive aquele que, segundo se diz, foi
descoberto recentemente: o de que nunca dorme) se tornam sublimes.
Por
causa dessa radical correspondência entre as coisas visíveis e os
pensamentos humanos, os salvagens, que só têm o que é necessário
ter, conversam mediante figuras. A medida que voltamos nas idades
históricas, a linguagem se torna mais pictórica, até que ao chegar
à sua infância é poesia total, ou seja, que todos os
acontecimentos espirituais sejam representados por símbolos
naturais.
Comprova-se
que os mesmos símbolos compõem os elementos primitivos de todas as
linhas. Observou-se, ademais, que as expressões idiomáticas de
todas as línguas se aproximam umas das outras nas passagens de maior
força e eloquência. E assim como é a primeira língua, é também
a última. Essa dependência direta entre a linguagem e a natureza,
essa conversão de um fenômeno externo em um modelo de algo
vinculado com a vida humana, nunca perde a capacidade de nos comover.
É isto o que dá à prática de um vigoroso fazendeiro ou lenhador
esse cativante atrativo que todos saboreiam. O poder de um homem para
ligar cada um de seus pensamentos com seu símbolo apropriado e então
proferi-lo, depende da simplicidade de seu caráter, vale dizer, de
seu amor à verdade e de seu anseio de comunicá-la sem perda. À
corrupção do homem segue-se a corrupção da linguagem. Quando a
simplicidade do caráter e a soberania das ideias são quebradas pelo
predomínio de desejos secundários – o desejo de riquezas, de
prazeres, de poderio, de fama –, e a duplicidade e a falsidade
tomam o lugar da simplicidade e verdade, o poder adquirido sobre a
natureza como intérprete da vontade se perde em certo grau; deixam
de criar-se novas imagens, e as antigas palavras são pervertidas
para representar coisas que não são; se recorre a um papel-moeda,
ainda não há linguotes que o respaldem nas arcas públicas. A seu
devido tempo, a fraude se torna manifesta, e as palavras perdem toda
sua faculdade de estimular o entendimento ou as emoções.
Em
toda nação civilizada, muito tempo atrás, podem ser encontradas
centenas de escritores que, durante um breve lapso, creem e fazem
outros creer que contemplam e enunciam verdades, quando em realidade,
não vestem por si mesmos a um só pensamento com suas roupagens
naturais, senão que se alimentam inconscientemente da linguagem
criada pelos escritores primordiais do país, a saber, aqueles que se
atêm fundamentalmente à natureza.
Mas
os homens sábios abrem seus caminhos através desta dicção
putrefata e voltam a enlaçar as palavras com as coisas visíveis; de
modo tal que uma linguagem figurativa é de imediato uma convincente
garantia de que quem a emprega terá estabelecido uma aliança com a
verdade e com Deus. Quando nosso discurso se eleva por sobre o
conhecido e se inflama com a paixão ou se exalta com o pensamento,
investe-se de imagens. Se o homem que dialoga seriamente presta
atenção aos seus processos intelectuais, descobrirá que uma imagem
material mais ou menos luminosa surge em sua mente junto com cada
pensamento e lhe proporciona sua veste. Por isso, a boa literatura e
a oratória brilhante são perpétuas alegorias.
Esse
imaginário é espontâneo. São a fusão da experiência com a ação
presente da mente. É a própria Criação. Isto é a atuação da
Causa Original através dos instrumentos que ele já criou.
Os
fatos podem sugerir as vantagens que a vida no campo oferece a uma
mente poderosa, em relação a vida artificial e opressiva das
cidades. Nós sabemos que a natureza nos ensina mais coisas do que
podemos transmitir pela vontade. Sua luz penetra para sempre no
espírito, e nos esquecemos da sua presença. O poeta ou o orador
criado nos bosques, cujos sentidos se nutriram ano após ano de suas
equânimes e apaziguadoras transformações, sem que houvesse se
proposto nem lhe prestado atenção, não esquecerá as lições
quando estiver em meio ao estrépito das cidades ou ao tumulto da
política. Muito tempo depois, sacudido entre a agitação e o terror
nas assembleias nacionais – na hora da revolução –,
reaparecerão ante ele essas imagens solenes em seu brilho matinal,
como símbolos e palavras adequados às ideias que os acontecimentos
do momento despertam. Ao chamado de um nobre sentimento, voltam a
balançar as florestas, a murmurar os pinheiros, a correr as águas
cintilantes do rio, a mugir o gado nos montes, tal como o viu e ouviu
em sua infância. E junto com essas formas, são postos em suas mãos
os feitiços da persuasão, as chaves do poder.
3. Desta maneira os objetos nos auxiliam na expressão de significados
particulares. Porém, que linguagem gigantesca para transmitir essas
minúsculas informações! Necessitava ela destas nobres raças,
desta profusão de formas, desta hoste de orbes no céu, para dotar
ao homem do dicionário e da gramática de seu idioma comunitário?
Ao usar este grande código para despachar nossos assuntos mais
banais, sentimos que não lhe demos ainda o destino que merece, nem
somos capazes de lhe dar. Nos assemelhamos a viajantes que cozinham
ovos nas cinzas de um vulcão.
Vemos
a linguagem, sempre pronta a investir o que queremos comunicar, e ao
mesmo tempo não podemos evitar de nos perguntar se os caracteres não
serão significativos em si mesmos. As montanhas, as ondas do mar, o
céu, não têm nenhum outro significado além dos que
deliberadamente lhes damos quando os empregamos como emblemas de
nosso pensamento? O mundo é emblemático. As partes da oração são
metáforas, porque a natureza toda é uma metáfora da mente humana.
As leis da natureza moral respondem as da matéria, como um rosto ao
outro no espelho. “O mundo visível e a relação que guardam suas
partes são o quadrante em que se estampa o invisível” . Os
axiomas da física traduzem as leis da ética: “O todo é maior
do que suas partes”, “A reação é igual à ação”, “Um
objeto de menor peso pode elevar a outro de maior peso, sendo a
diferença compensada mediante o tempo”, e muitas proposições
similares têm um sentido ético ao mesmo tempo que físico. O
sentido destas proposições é muito mais amplo e universal quando
aplicado à vida humana, e não quando é limitado ao uso técnico.
Analogamente,
as frases históricas memoráveis e os provérbios dos povos
consistem, em geral, em um fenômeno natural tomado como imagem ou
parábola de uma verdade moral. Assim, temos: “Pedra que rola
não junta musgo”; “Mais vale um pássaro na mão do que dois
voando”; “Um aleijado pelo bom caminho chega antes que um atleta
pelo caminho errado”; “O ferro tem de ser golpeado quando está
em brasas”; “Vinho doce dá vinagre amargo”; “A última gota
é a que faz transbordar o copo”; “As árvores mais grossas são
as que melhor afundaram suas raízes”, e assim sucessivamente.
Em
seu sentido primário, esses são fatos triviais, mas se os repetimos
é por seu valor analógico. E o que é válido para os provérbios
também é para as fábulas, parábolas e alegorias.
Essa
relação entre a mente e a matéria não é o produto da fantasia de
um poeta, senão fruto da vontade de Deus, e todos os homens estão
livres para conhecê-la. Isto lhes aparece ou não lhes aparece.
Quando em horas fortuitas meditamos sobre esse milagre, o homem sábio
duvida se, em todas as demais horas, não estava cego e surdo.
“Podem
estas coisas ser, E envolver-nos como nuvem de verão, Sem nosso
especial espanto?”
Pois
o universo se torna então transparente e é atravessado pela luz de
leis superiores a nossa. É esse o problema que afinal provocou o
assombro e o estudo de todos os grandes gênios, desde que o mundo
começou; desde a era dos egípcios e dos brâmanes até a de
Pitágoras, Platão, Bacon, Leibnitz, Swedenborg. Aí, senta-se a
Esfinge à beira do caminho, e de época para época – cada profeta
que surge trata de decifrar seu enigma. O espírito parece ter a
necessidade objetiva de se manifestar em formas materiais; e o dia e
a noite, o rio e a tormenta, o mamífero e o pássaro, o ácido e o
alcalino, preexistem como ideias necessárias na mente de Deus, e são
o que são em virtude de atributos precedentes no mundo do espírito.
Um feito é o ponto final, a emanação última do espírito. A
criação visível fecha a circunferência do mundo invisível.
“Objetos Materiais,” disse um filósofo francês, “são
necessariamente uma espécie de scoriae dos pensamentos substanciais
do Criador, que devem sempre preservar uma exata relação com sua
origem primeira; em outras palavras, a natureza visível precisa ter
um lado espiritual e moral”.
Essa
doutrina é abstrusa e, através das imagens de “vestuário”,
“escória”, “espelho” e companhia, pode estimular a fantasia;
nós devemos convocar a ajuda de mais vitais e sutis expositores para
torná-la simples. “Cada escritura é para ser interpretada pelo
mesmo espírito que a concebeu”, é a lei fundamental do
criticismo. Uma vida de harmonia com a natureza, o amor pela verdade
e virtude, purgarão os olhos para entender seu texto. Em níveis,
podemos chegar a conhecer o sentido primitivo dos objetos permanentes
da natureza, para que o mundo possa ser para nós como um livro
aberto, e cada forma um significante da sua vida oculta e causa
final.
Um
novo interesse nos surpreende, enquanto, sob a perspectiva sugerida
agora, contemplamos a temerosa extensão e multitude dos objetos, já
que “todo objeto, visto corretamente, libera uma nova faculdade da
alma.”
O
que era verdade inconsciente passa a integrar, quando o interpretamos
e definimos em um objeto, o domínio do saber: uma nova arma no
arsenal do poderio humano.
Ralph
Waldo Emerson, in Natureza – A Bíblia
do Naturalismo
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