sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Linguagem

LINGUAGEM é a terceira utilidade que a natureza põe à disposição do homem. A natureza é o veículo do pensamento, e em nível triplo.

1. As palavras são signos de fenômenos naturais.
2. Certos fenômenos naturais são símbolos de certos fenômenos espirituais.
3. A natureza é o símbolo do espírito.

1. As palavras são signos de fenômenos naturais.
Recorrer à história natural há de nos ajudar na história sobrenatural; recorrer à criação exterior nos dará uma linguagem para as entidades e transformações da criação interior. Cada palavra utilizada para expressar um fato moral ou intelectual, se delineada desde sua raiz, baseia-se em um empréstimo feito a alguma manifestação natural.
Direito quer dizer reto; errado quer dizer torto. Espírito é essencialmente vento; transgressão é o cruzamento de uma linha; supercílio é o levantar da sobrancelha. Dizemos coração para expressar a emoção, cabeça para denotar o pensamento; e pensamento e emoção são palavras tomadas às coisas sensíveis e atribuídas à natureza espiritual. A maior parte do processo pelo qual se cumpre essa transformação foi ocultado de nós nos remotos tempos da formação da linguagem; mas a mesma tendência pode ser observada diariamente nas crianças. As crianças e os selvagens usam apenas substantivos ou nomes, que convertem em verbos e aplicam aos atos mentais análogos a essas mesmas coisas.

2. Mas essa origem de todas as vozes que transmitem um significado espiritual – fato tão conspícuo da história das línguas – é a menor das dúvidas que temos da natureza. Não apenas as palavras são emblemáticas: as coisas mesmas o são. Cada fenômeno natural é um símbolo de um fenômeno espiritual. Cada manifestação da natureza corresponde a um estado da mente, e a esse estado da mente só podemos descrever apresentando sua manifestação natural como sua imagem. Um homem enfurecido é um leão, um homem astuto é uma raposa, um firme é uma rocha ou um sábio é uma luz. O cordeiro é a inocência; a serpente, o insidioso rancor; as flores expressam para nós as afeições delicadas. Luz e escuridão são nossa forma habitual de nos referir ao saber e à ignorância; o ardor, nossa expressão usual da paixão amorosa. A distância que divisamos atrás de nós e a que divisamos adiante são, respectivamente, nossas imagens de lembrança e esperança.
Quem, ao observar a corrente de um rio, não relembra o fluir de todas as coisas? Lança nele uma pedra, e os círculos que se propagam são o belo modelo de toda influência.
O homem é consciente de uma alma universal que está dentro ou por trás de sua vida individual, de onde as essências da Justiça, da Verdade, do Amor e da Libertade surgem e brilham como em um firmamento. Esta Alma Universal – que não é minha, nem vossa, nem daquele outro, senão que nós somos dela, somos sua propriedade e seus hóspedes – ele chama Razão. E o céu azul em que a terra de cada qual está enterrada, o céu com sua calma eterna e seus orbes perpétuos, é o modelo da Razão. Aquilo que, intelectualmente considerado, chamamos Razão, se considerado em relação à natureza, chamamos Espírito.
O Espírito é o Criador. O Espírito porta consigo a vida. E em todas as épocas e países, o homem o incorporou em sua linguagem como o PAI.
Vê-se facilmente que essas analogias nada têm de felizes ou caprichosas, senão que são constantes e impregnam a natureza. Não são sonhos de uns poucos poetas, dispersos aqui e ali, senão que o homem é um analogista e estuda as relações em todos os objetos. Localizado no centro dos seres, um raio de relação o une com todos eles.
E não é possível com prender ao homem sem esses objetos, nem a esses objetos sem o homem. Tomado em si mesmo, nenhum fenômeno da história natural tem valor, é estéril como um só sexo; mas case-o com a história humana, e se preencherá de vida. Floras inteiras, todos os volumes de Lineu e Buffon, são áridos catálogos de acontecimentos naturais; mas o mais trivial destes acontecimentos, os hábitos de uma planta, os órgãos de um inseto ou o trabalho que realiza ou o ruído que emite, empregados para ilustrar um feito da filosofia intelectual ou de algum modo associados com a natureza humana, afetam-nos de uma maneira intensa e gratificante. A semente de uma planta, – a que comoventes analogias com a natureza do homem já não deu lugar esse pequeno fruto em todo tipo de discursos, até chegar à voz de Paulo, que compara o cadáver do homem com uma semente – “semeia-se um corpo natural, ressuscita um corpo espiritual.” O ao ano; essas são quantidades certas de luz e calor elementares; porém, não há acaso na intenção de uma analogia entre a vida do homem e as estações? E não extraem as estações grandeza ou pathos dessa analogia? Os instintos da formiga têm muito pouca importância, considerados como coisa de formiga; mas enquanto um raio de relação parte dela e alcança o homem, a pequena escrava é vista como uma atleta de corpo pequeno e grande coração, e todos os seus hábitos (inclusive aquele que, segundo se diz, foi descoberto recentemente: o de que nunca dorme) se tornam sublimes.
Por causa dessa radical correspondência entre as coisas visíveis e os pensamentos humanos, os salvagens, que só têm o que é necessário ter, conversam mediante figuras. A medida que voltamos nas idades históricas, a linguagem se torna mais pictórica, até que ao chegar à sua infância é poesia total, ou seja, que todos os acontecimentos espirituais sejam representados por símbolos naturais.
Comprova-se que os mesmos símbolos compõem os elementos primitivos de todas as linhas. Observou-se, ademais, que as expressões idiomáticas de todas as línguas se aproximam umas das outras nas passagens de maior força e eloquência. E assim como é a primeira língua, é também a última. Essa dependência direta entre a linguagem e a natureza, essa conversão de um fenômeno externo em um modelo de algo vinculado com a vida humana, nunca perde a capacidade de nos comover. É isto o que dá à prática de um vigoroso fazendeiro ou lenhador esse cativante atrativo que todos saboreiam. O poder de um homem para ligar cada um de seus pensamentos com seu símbolo apropriado e então proferi-lo, depende da simplicidade de seu caráter, vale dizer, de seu amor à verdade e de seu anseio de comunicá-la sem perda. À corrupção do homem segue-se a corrupção da linguagem. Quando a simplicidade do caráter e a soberania das ideias são quebradas pelo predomínio de desejos secundários – o desejo de riquezas, de prazeres, de poderio, de fama –, e a duplicidade e a falsidade tomam o lugar da simplicidade e verdade, o poder adquirido sobre a natureza como intérprete da vontade se perde em certo grau; deixam de criar-se novas imagens, e as antigas palavras são pervertidas para representar coisas que não são; se recorre a um papel-moeda, ainda não há linguotes que o respaldem nas arcas públicas. A seu devido tempo, a fraude se torna manifesta, e as palavras perdem toda sua faculdade de estimular o entendimento ou as emoções.
Em toda nação civilizada, muito tempo atrás, podem ser encontradas centenas de escritores que, durante um breve lapso, creem e fazem outros creer que contemplam e enunciam verdades, quando em realidade, não vestem por si mesmos a um só pensamento com suas roupagens naturais, senão que se alimentam inconscientemente da linguagem criada pelos escritores primordiais do país, a saber, aqueles que se atêm fundamentalmente à natureza.
Mas os homens sábios abrem seus caminhos através desta dicção putrefata e voltam a enlaçar as palavras com as coisas visíveis; de modo tal que uma linguagem figurativa é de imediato uma convincente garantia de que quem a emprega terá estabelecido uma aliança com a verdade e com Deus. Quando nosso discurso se eleva por sobre o conhecido e se inflama com a paixão ou se exalta com o pensamento, investe-se de imagens. Se o homem que dialoga seriamente presta atenção aos seus processos intelectuais, descobrirá que uma imagem material mais ou menos luminosa surge em sua mente junto com cada pensamento e lhe proporciona sua veste. Por isso, a boa literatura e a oratória brilhante são perpétuas alegorias.
Esse imaginário é espontâneo. São a fusão da experiência com a ação presente da mente. É a própria Criação. Isto é a atuação da Causa Original através dos instrumentos que ele já criou.
Os fatos podem sugerir as vantagens que a vida no campo oferece a uma mente poderosa, em relação a vida artificial e opressiva das cidades. Nós sabemos que a natureza nos ensina mais coisas do que podemos transmitir pela vontade. Sua luz penetra para sempre no espírito, e nos esquecemos da sua presença. O poeta ou o orador criado nos bosques, cujos sentidos se nutriram ano após ano de suas equânimes e apaziguadoras transformações, sem que houvesse se proposto nem lhe prestado atenção, não esquecerá as lições quando estiver em meio ao estrépito das cidades ou ao tumulto da política. Muito tempo depois, sacudido entre a agitação e o terror nas assembleias nacionais – na hora da revolução –, reaparecerão ante ele essas imagens solenes em seu brilho matinal, como símbolos e palavras adequados às ideias que os acontecimentos do momento despertam. Ao chamado de um nobre sentimento, voltam a balançar as florestas, a murmurar os pinheiros, a correr as águas cintilantes do rio, a mugir o gado nos montes, tal como o viu e ouviu em sua infância. E junto com essas formas, são postos em suas mãos os feitiços da persuasão, as chaves do poder.

3. Desta maneira os objetos nos auxiliam na expressão de significados particulares. Porém, que linguagem gigantesca para transmitir essas minúsculas informações! Necessitava ela destas nobres raças, desta profusão de formas, desta hoste de orbes no céu, para dotar ao homem do dicionário e da gramática de seu idioma comunitário? Ao usar este grande código para despachar nossos assuntos mais banais, sentimos que não lhe demos ainda o destino que merece, nem somos capazes de lhe dar. Nos assemelhamos a viajantes que cozinham ovos nas cinzas de um vulcão.
Vemos a linguagem, sempre pronta a investir o que queremos comunicar, e ao mesmo tempo não podemos evitar de nos perguntar se os caracteres não serão significativos em si mesmos. As montanhas, as ondas do mar, o céu, não têm nenhum outro significado além dos que deliberadamente lhes damos quando os empregamos como emblemas de nosso pensamento? O mundo é emblemático. As partes da oração são metáforas, porque a natureza toda é uma metáfora da mente humana. As leis da natureza moral respondem as da matéria, como um rosto ao outro no espelho. “O mundo visível e a relação que guardam suas partes são o quadrante em que se estampa o invisível” . Os axiomas da física traduzem as leis da ética: “O todo é maior do que suas partes”, “A reação é igual à ação”, “Um objeto de menor peso pode elevar a outro de maior peso, sendo a diferença compensada mediante o tempo”, e muitas proposições similares têm um sentido ético ao mesmo tempo que físico. O sentido destas proposições é muito mais amplo e universal quando aplicado à vida humana, e não quando é limitado ao uso técnico.
Analogamente, as frases históricas memoráveis e os provérbios dos povos consistem, em geral, em um fenômeno natural tomado como imagem ou parábola de uma verdade moral. Assim, temos: “Pedra que rola não junta musgo”; “Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”; “Um aleijado pelo bom caminho chega antes que um atleta pelo caminho errado”; “O ferro tem de ser golpeado quando está em brasas”; “Vinho doce dá vinagre amargo”; “A última gota é a que faz transbordar o copo”; “As árvores mais grossas são as que melhor afundaram suas raízes”, e assim sucessivamente.
Em seu sentido primário, esses são fatos triviais, mas se os repetimos é por seu valor analógico. E o que é válido para os provérbios também é para as fábulas, parábolas e alegorias.
Essa relação entre a mente e a matéria não é o produto da fantasia de um poeta, senão fruto da vontade de Deus, e todos os homens estão livres para conhecê-la. Isto lhes aparece ou não lhes aparece. Quando em horas fortuitas meditamos sobre esse milagre, o homem sábio duvida se, em todas as demais horas, não estava cego e surdo.
Podem estas coisas ser, E envolver-nos como nuvem de verão, Sem nosso especial espanto?”
Pois o universo se torna então transparente e é atravessado pela luz de leis superiores a nossa. É esse o problema que afinal provocou o assombro e o estudo de todos os grandes gênios, desde que o mundo começou; desde a era dos egípcios e dos brâmanes até a de Pitágoras, Platão, Bacon, Leibnitz, Swedenborg. Aí, senta-se a Esfinge à beira do caminho, e de época para época – cada profeta que surge trata de decifrar seu enigma. O espírito parece ter a necessidade objetiva de se manifestar em formas materiais; e o dia e a noite, o rio e a tormenta, o mamífero e o pássaro, o ácido e o alcalino, preexistem como ideias necessárias na mente de Deus, e são o que são em virtude de atributos precedentes no mundo do espírito. Um feito é o ponto final, a emanação última do espírito. A criação visível fecha a circunferência do mundo invisível. “Objetos Materiais,” disse um filósofo francês, “são necessariamente uma espécie de scoriae dos pensamentos substanciais do Criador, que devem sempre preservar uma exata relação com sua origem primeira; em outras palavras, a natureza visível precisa ter um lado espiritual e moral”.
Essa doutrina é abstrusa e, através das imagens de “vestuário”, “escória”, “espelho” e companhia, pode estimular a fantasia; nós devemos convocar a ajuda de mais vitais e sutis expositores para torná-la simples. “Cada escritura é para ser interpretada pelo mesmo espírito que a concebeu”, é a lei fundamental do criticismo. Uma vida de harmonia com a natureza, o amor pela verdade e virtude, purgarão os olhos para entender seu texto. Em níveis, podemos chegar a conhecer o sentido primitivo dos objetos permanentes da natureza, para que o mundo possa ser para nós como um livro aberto, e cada forma um significante da sua vida oculta e causa final.
Um novo interesse nos surpreende, enquanto, sob a perspectiva sugerida agora, contemplamos a temerosa extensão e multitude dos objetos, já que “todo objeto, visto corretamente, libera uma nova faculdade da alma.”
O que era verdade inconsciente passa a integrar, quando o interpretamos e definimos em um objeto, o domínio do saber: uma nova arma no arsenal do poderio humano.
Ralph Waldo Emerson, in Natureza A Bíblia do Naturalismo

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