sábado, 16 de novembro de 2019

Leite derramado - 5

É o tal negócio, me arrancam da cama, me passam para a maca, ninguém quer saber dos meus incômodos. Nem bem acordei, não me escovaram os dentes, estou com a cara amassada e a barba por fazer, e com este péssimo aspecto me fazem desfilar sob a luz fria do corredor que é um verdadeiro purgatório, com um monte de gente estropiada pelo chão, fora os vagabundos que vêm ali a fim de ver desgraça. Por isso puxo o lençol e cubro meu outrora belo rosto, que logo tornam a expor para não parecer que estou morto, porque causa má impressão, ou é vexatório para maqueiro transportar defunto. Depois tem o elevador, onde todos olham sem cerimônia para a minha cara, em vez de olhar o chão, o teto, o mostrador de andares, porque também não custa nada olhar para um traste. Lá em cima vem outro corredor cheio de zigue-zagues e lamentações e urros, por fim a velha sala de tomografia, e não sei a quem aproveita tamanho transtorno. Já tirei não sei quantos raios X, já me reviraram todo, e no fim não dizem nada, nunca me apresentaram uma chapa de pulmão. Por falar nisso, eu amaria dar uma olhada nas minhas fotos particulares, e o doutor, que tem um ar polido, se não se importar dê um pulo na minha casa. Peça à minha mãe que lhe indique a escrivaninha barroca de jacarandá, cuja gaveta central é abarrotada de fotografias. Procure direito e me traga uma foto do tamanho de um cartão-postal, com um janeiro de 1929 escrito à mão no verso, que mostra uma pequena multidão no cais do porto, com um navio de três chaminés ao fundo. Da multidão veem-se apenas as costas das vestes e copas de chapéus, porque todo mundo estava virado para o Lutétia na baía. Mas não me deixe de trazer também a lupa, que está sempre na gaveta menor, e vou lhe mostrar uma coisa. Num exame minucioso, pode-se notar na foto um único rosto, de um único homem voltado para a objetiva, e lhe asseguro que esse homem de terno preto e chapéucoco sou eu. Nem adianta arrumar uma lupa mais potente, porque ampliada demais a fisionomia se deforma, não se vê boca nem nariz nem olhos, será como uma máscara de borracha com um bigode escuro. E ainda que a imagem resultasse nítida, os traços apurados do meu semblante, aos vinte e dois anos incompletos, talvez lhe parecessem menos verossímeis que uma máscara de borracha. Mas lá estava eu, e me lembro bem das pessoas todas magnetizadas pela aparição do Lutétia, que se deu de modo meio teatral, ao irromper de denso nevoeiro. Nisso olhei para trás e vi um fotógrafo com seu equipamento a uns vinte metros de distância. Não era novidade, já de um tempo havia por toda parte esses diletantes ou profissionais da fotografia, captando instantâneos para a posteridade, como se dizia. Então presumi, não sem vaidade, que ao se revelar aquele instantâneo, eu seria o único a figurar para a posteridade frente a frente. E passados muitos e muitos anos, uma vez consumada a fuzilaria do tempo, ainda assim de alguma forma eu seria um rosto sobrevivente, porque tive o instinto de me voltar para a câmera naquele instante. De par com essa foto, adquiri no sebo uma similar, de igual tamanho, sacada poucas horas após a primeira, do mesmo ângulo e com a mesma lente, evidentemente pelo mesmo fotógrafo. Então o Lutétia já tinha atracado, e os passageiros caminham no cais, cercados de amigos e parentes, em direção ao armazém da alfândega. Eu estou ali embaixo à esquerda, ao lado de um sujeito mais alto, de terno cinza ou bege, com uma palheta meio torta na cabeça. Estou de novo olhando para a câmera, mas dessa vez contrariado por aparecer quase como um lacaio, carregando um sobretudo e uma pasta de couro alheios. O nome do monsieur a meu lado era Dubosc, e fosse sonora a fotografia, sobressairia uma voz muito grossa a perguntar pela delegação francesa. Naquele momento ele provavelmente ainda não tinha me reconhecido, pois depois de me largar nas mãos o sobretudo e a pasta, olhava por cima de mim e não parava de falar, 1'ambassadeur?, 1'ambassadeur? Já estava previsto que o embaixador lhe abriria os salões na noite de sábado, para uma gala com a presença do corpo diplomático, de autoridades e figuras ilustres da sociedade local, mas Dubosc não se dava por satisfeito. Em bom francês eu me disse encantado em revê-lo, depois de nossos inolvidáveis rendez-vous em Paris, na companhia de meu finado pai, o senador Assumpção. Mas nem a menção a meu pai surtiu efeito, ele insistia em perguntar pelo cônsul, pelo adido militar, e protestou em voz alta contra a demora na liberação da bagagem. É sabido que certas pessoas viajam mal, como alguns vinhos em trânsito se irritam, por isso julguei prudente conduzi-lo em silêncio ao Palace Hotel, deixando-o à vontade para se recuperar até o dia seguinte. Também me apetecia voltar logo para casa, onde minha mulher talvez me agradecesse por tê-la poupado de uma jornada maçante. E já no saguão o homem detestou o Palace, que sem dúvida não se comparava a um Ritz de Paris, mas era o melhor hotel da avenida Central, avenida que por sua vez lhe causou tédio, porque metida a europeia. Esse Dubosc, vou lhe contar, não sei que fim levou, mas se tinha então uns quarenta anos, pelos meus cálculos morreu há mais de vinte. Faço votos de que tenha falecido na paz dos seus, porém de algum colapso fulminante, para que não se doesse pela vida a fora tanto quanto eu, como agora me doem os ossos e as escaras ao voltar para a maca. Imagino o quanto ele, em meu lugar, não teria blasfemado contra o gelo desta sala e contra o bafo do calor lá fora. Espero mesmo que nunca tenha entrado em elevadores fedorentos, nem visto essas baratas subindo pelas paredes, nem provado a gororoba de um hospital igual a este, nem continuado a falar merde alors, até a hora da morte. Porque tudo é mesmo uma merda, mas depois melhora um pouco, quando de noite a namorada vem.
Chico Buarque de Holanda, in Leite derramado

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