É
o tal negócio, me arrancam da cama, me passam para a maca, ninguém
quer saber dos meus incômodos. Nem bem acordei, não me escovaram os
dentes, estou com a cara amassada e a barba por fazer, e com este
péssimo aspecto me fazem desfilar sob a luz fria do corredor que é
um verdadeiro purgatório, com um monte de gente estropiada pelo
chão, fora os vagabundos que vêm ali a fim de ver desgraça. Por
isso puxo o lençol e cubro meu outrora belo rosto, que logo tornam a
expor para não parecer que estou morto, porque causa má impressão,
ou é vexatório para maqueiro transportar defunto. Depois tem o
elevador, onde todos olham sem cerimônia para a minha cara, em vez
de olhar o chão, o teto, o mostrador de andares, porque também não
custa nada olhar para um traste. Lá em cima vem outro corredor cheio
de zigue-zagues e lamentações e urros, por fim a velha sala de
tomografia, e não sei a quem aproveita tamanho transtorno. Já tirei
não sei quantos raios X, já me reviraram todo, e no fim não dizem
nada, nunca me apresentaram uma chapa de pulmão. Por falar nisso, eu
amaria dar uma olhada nas minhas fotos particulares, e o doutor, que
tem um ar polido, se não se importar dê um pulo na minha casa. Peça
à minha mãe que lhe indique a escrivaninha barroca de jacarandá,
cuja gaveta central é abarrotada de fotografias. Procure direito e
me traga uma foto do tamanho de um cartão-postal, com um janeiro de
1929 escrito à mão no verso, que mostra uma pequena multidão no
cais do porto, com um navio de três chaminés ao fundo. Da multidão
veem-se apenas as costas das vestes e copas de chapéus, porque todo
mundo estava virado para o Lutétia na baía. Mas não me deixe de
trazer também a lupa, que está sempre na gaveta menor, e vou lhe
mostrar uma coisa. Num exame minucioso, pode-se notar na foto um
único rosto, de um único homem voltado para a objetiva, e lhe
asseguro que esse homem de terno preto e chapéucoco sou eu. Nem
adianta arrumar uma lupa mais potente, porque ampliada demais a
fisionomia se deforma, não se vê boca nem nariz nem olhos, será
como uma máscara de borracha com um bigode escuro. E ainda que a
imagem resultasse nítida, os traços apurados do meu semblante, aos
vinte e dois anos incompletos, talvez lhe parecessem menos
verossímeis que uma máscara de borracha. Mas lá estava eu, e me
lembro bem das pessoas todas magnetizadas pela aparição do Lutétia,
que se deu de modo meio teatral, ao irromper de denso nevoeiro. Nisso
olhei para trás e vi um fotógrafo com seu equipamento a uns vinte
metros de distância. Não era novidade, já de um tempo havia por
toda parte esses diletantes ou profissionais da fotografia, captando
instantâneos para a posteridade, como se dizia. Então presumi, não
sem vaidade, que ao se revelar aquele instantâneo, eu seria o único
a figurar para a posteridade frente a frente. E passados muitos e
muitos anos, uma vez consumada a fuzilaria do tempo, ainda assim de
alguma forma eu seria um rosto sobrevivente, porque tive o instinto
de me voltar para a câmera naquele instante. De par com essa foto,
adquiri no sebo uma similar, de igual tamanho, sacada poucas horas
após a primeira, do mesmo ângulo e com a mesma lente, evidentemente
pelo mesmo fotógrafo. Então o Lutétia já tinha atracado, e os
passageiros caminham no cais, cercados de amigos e parentes, em
direção ao armazém da alfândega. Eu estou ali embaixo à
esquerda, ao lado de um sujeito mais alto, de terno cinza ou bege,
com uma palheta meio torta na cabeça. Estou de novo olhando para a
câmera, mas dessa vez contrariado por aparecer quase como um lacaio,
carregando um sobretudo e uma pasta de couro alheios. O nome do
monsieur a meu lado era Dubosc, e fosse sonora a fotografia,
sobressairia uma voz muito grossa a perguntar pela delegação
francesa. Naquele momento ele provavelmente ainda não tinha me
reconhecido, pois depois de me largar nas mãos o sobretudo e a
pasta, olhava por cima de mim e não parava de falar, 1'ambassadeur?,
1'ambassadeur? Já estava previsto que o embaixador lhe abriria os
salões na noite de sábado, para uma gala com a presença do corpo
diplomático, de autoridades e figuras ilustres da sociedade local,
mas Dubosc não se dava por satisfeito. Em bom francês eu me disse
encantado em revê-lo, depois de nossos inolvidáveis rendez-vous em
Paris, na companhia de meu finado pai, o senador Assumpção. Mas nem
a menção a meu pai surtiu efeito, ele insistia em perguntar pelo
cônsul, pelo adido militar, e protestou em voz alta contra a demora
na liberação da bagagem. É sabido que certas pessoas viajam mal,
como alguns vinhos em trânsito se irritam, por isso julguei prudente
conduzi-lo em silêncio ao Palace Hotel, deixando-o à vontade para
se recuperar até o dia seguinte. Também me apetecia voltar logo
para casa, onde minha mulher talvez me agradecesse por tê-la poupado
de uma jornada maçante. E já no saguão o homem detestou o Palace,
que sem dúvida não se comparava a um Ritz de Paris, mas era o
melhor hotel da avenida Central, avenida que por sua vez lhe causou
tédio, porque metida a europeia. Esse Dubosc, vou lhe contar, não
sei que fim levou, mas se tinha então uns quarenta anos, pelos meus
cálculos morreu há mais de vinte. Faço votos de que tenha falecido
na paz dos seus, porém de algum colapso fulminante, para que não se
doesse pela vida a fora tanto quanto eu, como agora me doem os ossos
e as escaras ao voltar para a maca. Imagino o quanto ele, em meu
lugar, não teria blasfemado contra o gelo desta sala e contra o bafo
do calor lá fora. Espero mesmo que nunca tenha entrado em elevadores
fedorentos, nem visto essas baratas subindo pelas paredes, nem
provado a gororoba de um hospital igual a este, nem continuado a
falar merde alors, até a hora da morte. Porque tudo é mesmo uma
merda, mas depois melhora um pouco, quando de noite a namorada vem.
Chico
Buarque de Holanda, in Leite derramado
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