Diz-se
de quem come de tudo que “come como um animal”, o que é uma
injustiça. Nenhum outro animal é omnívoro como o homem. Estamos no
topo da cadeia alimentar entre os bichos de sangue quente e somos da
categoria dos predadores, definida pela posição e a função dos
olhos. Somos caçadores, e bons caçadores, e comemos de tudo, da
baleia ao escargot.
Já
éramos bons caçadores mesmo antes de inventar o arco e a flecha e a
mira telescópica com sensor infravermelho. Mas nossa vocação
predatória nos deixou mal-equipados como presas. Nascemos com
binóculos estereoscópicos na cabeça mas não temos a visão
periférica que ajuda outras espécies a sobreviverem à sua condição
de presas. A ausência de olhos nas têmporas, por exemplo, está na
origem de toda a nossa literatura de terror. Se o homem tivesse olho
na nuca, 50% da sua angústia existencial desapareceria e Stephen
King hoje seria um homem pobre. Mas nunca sabemos que outro predador
se aproxima pelas nossas costas.
Temos
o sentimento de presas sem seu instrumental de defesa. Somos reféns
da nossa visão especializada, tememos tudo que nossos olhos de
caçador não podem captar com nitidez na sua mira: vultos, sombras,
fantasmas, premonições, ruídos no escuro, sensações de culpa. Ao
contrário de outros animais predatórios, sentimos culpa. Temos
remorso. A palavra “remorso” quer dizer, mais ou menos, comer de
volta. Outras espécies são autofágicas, mas só o homem desconfia
que seu semelhante engolido pode começar a mordê-lo por dentro, por
vingança.
Tememos
a retribuição pela nossa omnivoracidade. Os mortos que voltam do
túmulo para nos aterrorizar são como restos de comida – ossos à
mostra, carnes putrefatas. Só um inato senso do ridículo impediu
até agora que alguém inventasse a suprema história de terror, a de
um homem perseguido pelos espíritos de tudo que já comeu na vida,
desde a primeira galinha. Inclusive os vegetais.
Nosso
passado de canibais nos persegue. Aquela senhora que reage à
rechonchudez de um bebê dizendo que ele é tão lindo que “dá
vontade de comer” só está expressando esta verdade atávica, que
tudo que nos agrada é apetitoso, que no fim todo desejo é uma
vontade de comer. Comida e sexo se confundem na nossa linguagem desde
que ela existe, e não apenas porque a ingestão e a eliminação da
comida e a atividade erótica usam as mesmas vias, ou pelos menos
vias paralelas.
E
nem apenas pela analogia de formas: “vagem” vem do latim
“vagina”; baunilha se chama assim porque os espanhóis acharam
que aquela vagem consumida pelo astecas se parecia com uma
“vainilla”, diminutivo de “vaina”, ou bainha, que também vem
de “vagina”; “fica”, ou figo, em italiano é o apelido da
vulva; “penne”, aquele espaguete curto e grosso, vem de pênis
mesmo. Etc..., etc. Mas não é só isto. Comer é uma forma extrema
de possuir o que queremos, seja o fígado ou a coragem do inimigo, o
sangue redentor do deus ou a carne da pessoa amada. Fazemos tudo isso
no sentido figurado porque, afinal, civilização é isso, é a
domesticação dos nossos apetites, mas na nossa linguagem ainda
somos predadores e comemos todas as nossas presas. Pezinhos de bebê
incluídos.
Ou
isto, ou a dieta está me fazendo delirar.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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