segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Fomes

Diz-se de quem come de tudo que “come como um animal”, o que é uma injustiça. Nenhum outro animal é omnívoro como o homem. Estamos no topo da cadeia alimentar entre os bichos de sangue quente e somos da categoria dos predadores, definida pela posição e a função dos olhos. Somos caçadores, e bons caçadores, e comemos de tudo, da baleia ao escargot.
Já éramos bons caçadores mesmo antes de inventar o arco e a flecha e a mira telescópica com sensor infravermelho. Mas nossa vocação predatória nos deixou mal-equipados como presas. Nascemos com binóculos estereoscópicos na cabeça mas não temos a visão periférica que ajuda outras espécies a sobreviverem à sua condição de presas. A ausência de olhos nas têmporas, por exemplo, está na origem de toda a nossa literatura de terror. Se o homem tivesse olho na nuca, 50% da sua angústia existencial desapareceria e Stephen King hoje seria um homem pobre. Mas nunca sabemos que outro predador se aproxima pelas nossas costas.
Temos o sentimento de presas sem seu instrumental de defesa. Somos reféns da nossa visão especializada, tememos tudo que nossos olhos de caçador não podem captar com nitidez na sua mira: vultos, sombras, fantasmas, premonições, ruídos no escuro, sensações de culpa. Ao contrário de outros animais predatórios, sentimos culpa. Temos remorso. A palavra “remorso” quer dizer, mais ou menos, comer de volta. Outras espécies são autofágicas, mas só o homem desconfia que seu semelhante engolido pode começar a mordê-lo por dentro, por vingança.
Tememos a retribuição pela nossa omnivoracidade. Os mortos que voltam do túmulo para nos aterrorizar são como restos de comida – ossos à mostra, carnes putrefatas. Só um inato senso do ridículo impediu até agora que alguém inventasse a suprema história de terror, a de um homem perseguido pelos espíritos de tudo que já comeu na vida, desde a primeira galinha. Inclusive os vegetais.
Nosso passado de canibais nos persegue. Aquela senhora que reage à rechonchudez de um bebê dizendo que ele é tão lindo que “dá vontade de comer” só está expressando esta verdade atávica, que tudo que nos agrada é apetitoso, que no fim todo desejo é uma vontade de comer. Comida e sexo se confundem na nossa linguagem desde que ela existe, e não apenas porque a ingestão e a eliminação da comida e a atividade erótica usam as mesmas vias, ou pelos menos vias paralelas.
E nem apenas pela analogia de formas: “vagem” vem do latim “vagina”; baunilha se chama assim porque os espanhóis acharam que aquela vagem consumida pelo astecas se parecia com uma “vainilla”, diminutivo de “vaina”, ou bainha, que também vem de “vagina”; “fica”, ou figo, em italiano é o apelido da vulva; “penne”, aquele espaguete curto e grosso, vem de pênis mesmo. Etc..., etc. Mas não é só isto. Comer é uma forma extrema de possuir o que queremos, seja o fígado ou a coragem do inimigo, o sangue redentor do deus ou a carne da pessoa amada. Fazemos tudo isso no sentido figurado porque, afinal, civilização é isso, é a domesticação dos nossos apetites, mas na nossa linguagem ainda somos predadores e comemos todas as nossas presas. Pezinhos de bebê incluídos.
Ou isto, ou a dieta está me fazendo delirar.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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