terça-feira, 5 de novembro de 2019

A confissão de Jeremias Carrasco

Regressemos à manhã em que Nasser Evangelista, arrastado por um eco de sombrias vozes, se lançou sobre Monte e o esfaqueou. Entre a confusão de gente que se juntara à porta de Ludo, destacavam-se, como talvez se recordem, dois personagens vestidos de preto. A velha senhora reparou neles após a envergonhada fuga de Monte e a saída (também apressada) de Baiacu. Reparou neles, mas não conseguiu saber o que pretendiam, pois, entretanto, Daniel Benchimol começara a ler a carta que Maria da Piedade Lourenço escrevera ao diretor do Jornal de Angola.
Os dois homens esperaram até o jornalista terminar. Testemunharam, em silêncio, a aflição dela, as lágrimas enxugadas com as costas da mão. Por fim, Daniel retirou-se, prometendo escrever a Maria da Piedade, e os dois homens avançaram. O mais velho estendeu a mão a Ludo, mas foi o mais novo quem falou:
Pedimos licença para entrar, madrinha.
O que desejam?
Jeremias Carrasco tirou um caderno do bolso do casaco e escreveu rapidamente nele. Mostrou-o a Ludo. A mulher abanou a cabeça:
Vejo que é um caderno. As letras já não consigo ler. O senhor é mudo?
O jovem leu alto:
Deixe-nos entrar, por favor. Preciso do seu perdão, e da sua ajuda.
Ludo encarou-os, teimosa:
Não tenho onde vos sentar. Há trinta anos que não recebo visitas.
Jeremias voltou a escrever, mostrando depois o caderno ao filho:
Ficaremos de pé. O meu pai diz que as cadeiras, mesmo as melhores, não melhoram as conversas.
Ludo deixou-os entrar. Sabalu foi buscar quatro velhas latas de azeite. Sentaram-se nelas. Jeremias olhou com horror para o chão de cimento, as paredes escuras, riscadas a carvão. Tirou o gorro da cabeça. O crânio, rapado, brilhava na penumbra. Voltou a escrever no caderno.
A sua irmã e o seu cunhado morreram num acidente de carro. – Leu o filho: O responsável fui eu. Matei-os. Conheci o Velho Pico, no Uíge, no início da guerra. Foi ele quem me procurou. Alguém lhe falou de mim. Precisava da minha ajuda para dar uma golpada na Diamang. Uma coisa limpa, bem feita, sem sangue nem confusões. Combinamos que eu ficaria com metade das pedras. Fiz o que tinha a fazer, deu tudo certo, mas, no fim, o Pico fugiu. Deixou-me de mãos vazias. Nunca acreditou que eu o viesse procurar a Luanda. Não me conhecia. Entrei na cidade, cercada pelas tropas do Mobutu e pela nossa gente, uma aventura louca, e procurando aqui e ali, durante dois dias, acabei por encontrá-lo, numa festa, na Ilha. Fugiu ao ver-me. Persegui-o, de carro, como nos filmes. Então ele despistou-se e embateu contra uma árvore. A sua irmã teve morte imediata. O Pico viveu o suficiente para me dizer onde escondera os diamantes. Lamento muito.
Antônio lia com dificuldade. Talvez pela escassez de luz, talvez porque não estivesse habituado a ler, talvez porque lhe custasse acreditar no que ia lendo. Quando terminou ergueu para o pai uns olhos assombrados. O velho tinha-se encostado à parede. Respirava com dificuldade. Tirou o caderno das mãos de Antônio e voltou a escrever. Ludo ergueu a mão, num gesto vago, agoniada, tentando impedi-lo:
Não se atormente mais. Os erros nos corrigem. Talvez seja necessário esquecer. Devíamos praticar o esquecimento.
Jerônimo abanou a cabeça, irritado. Rabiscou mais umas palavras no pequeno caderno. Entregou-o ao filho:
O pai não quer esquecer. Esquecer é morrer, diz ele. Esquecer é uma rendição.
O velho voltou a escrever:
O pai pede para eu falar do meu povo. Quer que lhe fale dos bois, os bois são a nossa riqueza, mas não são bens de compra e venda. A gente os contempla. Gostamos de escutar o grito dos bois.
Isolado entre os mucubais, Jerônimo renascera não outra pessoa mas outras pessoas, um povo. Antes, ele era ele no meio dos outros. No melhor dos casos, ele, abraçado a outros. No deserto sentira-se pela primeira vez parte de um todo. Defendem alguns biólogos que uma única abelha, uma única formiga, não constituem senão células móveis de um mesmo indivíduo. Os verdadeiros organismos são a colmeia e o formigueiro. Também um mucubal não existe sem os outros.
Ludo recordou-se, enquanto Antônio ia lendo, a custo, as explicações do pai, de uns versos de Fernando Pessoa: Tenho dó das estrelas / Luzindo há tanto tempo, / Há tanto tempo... / Tenho dó delas. // Não haverá um cansaço / Das coisas, / De todas as coisas / Como das pernas ou de um braço? // Um cansaço de existir, / De ser, / Só de ser, // O ser triste brilhar ou sorrir… // Não haverá, enfim, / Para as coisas que são, / Não morte, mas sim / Uma outra espécie de fim, / Ou uma grande razão / – Qualquer coisa assim / Como um perdão?
Antônio falava dos novos latifundiários, do arame farpado dividindo o deserto, cortando os caminhos de acesso aos pastos. Reagir a tiro levaria a guerras terríveis, durante as quais os mucubais perderiam o gado, perderiam a alma e a liberdade. Fora assim em 1940, quando os portugueses mataram quase todo o povo, enviando os sobreviventes, como escravos, para as roças de São Tomé. A outra solução, segundo Jerônimo, seria comprar terras, as mesmas que sempre foram dos kuvale, dos himba, dos muchavicuas, e que hoje pertencem a generais e prósperos empresários, muitos sem nenhuma ligação ao desmesurado céu do Sul.
Ludo ergueu-se, foi buscar os dois diamantes que haviam sobrado, e entregou-os a Jerônimo.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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