domingo, 20 de outubro de 2019

O eco

Não será, de certo, um nome novo, nem há de pretender ao mérito da originalidade. Mas é, na sua singeleza e brevidade, um nome bem-inspirado, bem-achado e bem-agoirado, um nome de feliz expressão e excelentes promessas: todo um programa numa só palavra.
O eco não mente, nunca mentiu, não pode mentir: estampa, duplica, repercute os sons, os rumores, as vozes; recolhe do ambiente, e transporta, alonga, renova as impressões, as vibrações, as comoções da atmosfera: dá aos contactos e aos choques, às quedas e aos sustos uma enunciação alada, veloz, instantânea como a dos raios luminosos; descobre os ruídos sutis, escava os segredos recônditos, reúne os gemidos esparsos, e das leves ou grandes ondas, abafadas no solo, escondidas nas trevas, disseminadas no ar forma as largas ressonâncias, os brados, os clamores, que animam o espaço, abalam a terra, e anunciam o tempo.
Batizar-se com a denominação de eco o mesmo importa que tomar a verdade, a fidelidade, a imparcialidade, a incorruptibilidade por credo, por vocação e por bandeira. Não se acharia, por mais que se buscasse, para entrar ao jornalismo, a porta de um compromisso mais eloquente, mais preciso, mais severo.
Servir ao público de eco aos fatos, às coisas, às realidades contemporâneas, e ser, do público para com ele mesmo, o eco dos seus sentimentos, das suas aspirações, das suas necessidades: eis aí tudo o que da imprensa poderia reclamar a mais exigente das fórmulas do seu dever. E tudo isto se traduz, isso tudo se condensa na escolha do nome, com que entra à liça este simpático e esperançoso órgão de publicidade, em cuja tenda se agrupam, com vivo amor ao trabalho e ardente fé no ideal, algumas consciências e coragens comprovadas na luta pelas boas reivindicações humanas e pela boa causa brasileira.
Dar todos os ecos ao mal, e extinguir todos os ecos do bem: tal a empresa em que, há quatro anos, se afervora o governo da nossa degradação, e cujo sistema culminou, para a nossa miséria e vergonha nossa, nos oito meses do infame estado de sítio que hoje acaba. Organizou-se a mordaça, a surdez, a calafetagem. Puseram-se ao governo pés de lã, porque se lhe não ouvissem os movimentos; acolchoaram-se-lhe as paredes, para que se lhe não escutassem as conjuras; algodoaram-se-lhe as casas fortes, a fim de se lhe não sentirem as dilapidações; tomaram-se-lhe à estopa os vãos, as frestas, os interstícios, com a censura, a intimidação e a cadeia, para se lhe não saber dos arranjos, das agências, das aventuras mais ou menos escabrosas; e, desta maneira, à força de sigilo e terror, se armou a situação escusa, calada, enigmática, cujas caldeiras, vedadas à menor escapa de vapor ou bulha, acumularam silenciosamente a bancarrota, que nos acaba de estoirar.
Fossem as eleições o eco do voto popular, fosse o congresso nacional o eco da nação, fosse o governo o eco da lei, fossem os tribunais o eco da justiça, fosse a tribuna o eco das consciências, fosse a política o eco do patriotismo, fossem as manifestações públicas o eco das manifestações particulares, fosse a nação o eco de si mesma, não se houvessem abolido os ecos da moralidade e da honra, da indignação e do pudor, recalcados hoje, pela compressão ou pela corrupção, no seio do país, e não teríamos acordado agora ao estupendo fracasso deste desmoronamento, sem saber como lhe conter a voragem nem lhe lavar o opróbrio.
Dura exigência, pois, o que ora se impõe à imprensa, de suprir ela só, em si só concentrar, e extrair de si só todos esses ecos, que emudeceram, que feneceram, que expiraram, dando-nos a sensação de um ataúde bem-pregado, onde se sabe que os vermes estão esfervilhando, mas não se ouve nada senão o silêncio sensível da morte.
O nome, pois, deste jornal nos soa como um símbolo, como a imagem do renascimento que anelamos. Deus o ajude, para se desempenhar da sua tarefa, colaborando na família dos bons, dos sãos, dos fortes, dos que não empalidecem com ameaças, perigos ou sofrimentos, dos que, neste momento, hão de responder aos sussurros do terror agonizante, erguendo bem alto a fronte livre da imprensa.
Rui Barbosa, in Antologia

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