domingo, 20 de outubro de 2019

Na Califórnia

Fotograma do filme As vinhas da ira (1940), de John Ford 

A família Joad deslocava-se lentamente em direção ao Oeste; acima, pelas montanhas do Novo México, passando os pináculos e pirâmides do planalto. Galgou a região montanhosa do Arizona e avistou, através de uma fenda na montanha, aos seus pés o deserto. Uma guarda de fronteira fê-la parar.
Aonde vão?
Pra Califórnia — disse Tom.
Quanto tempo pretendem ficar no Arizona?
Só o tempo que se leva pra passar.
Trouxeram alguma planta?
Não. Nenhuma.
Precisamos passar as suas coisas em revista.
Mas eu já diss’que a gente não trouxe plantas.
Um guarda pregou-lhes um papelzinho no para-brisa.
OK. Podem passar, mas andem depressa.
Tá certo. É o que a gente vai fazer.
A família subiu pela encosta, e arbustos entrelaçados a cobriam. Halbrook, Joseph City, Winslow. E aí começavam as árvores altas, e os carros cuspiam vapor e engasgavam penosamente na subida. Chegou Flagstaff, e aí era o topo. De Flagstaff para baixo, através dos grandes platôs, a estrada estendia-se reta à distância. A água escasseava, e era comprada a cinco, dez, quinze cents o galão. O sol torrava as terras rochosas já áridas, e diante da família estendia-se a serra caótica, de dentes quebrados: a muralha ocidental do Arizona. E agora ela fugia ao sol e à seca. Viajara a noite toda, e à noite chegara às montanhas. Trepara na muralha rasgada pelos despenhadeiros, e a fraca luz de seus faróis errara nas pedras pálidas que orlavam a estrada. Passou o pico ao anoitecer e desceu vagarosamente através das ruínas de pedra de Oatman; e ao chegar a madrugada viu, embaixo, o rio Colorado. A viagem continuou até Topock e a família teve de estacionar na ponte, enquanto um guarda de fronteira raspava o papelzinho que tinha sido pregado no para-brisa. Depois atravessou a ponte e penetrou no deserto selvagem e rochoso. E conquanto estivesse mortalmente cansada e o calor da manhã estivesse aumentando, resolveu parar.
O pai disse:
Chegamos... Tamo na Califórnia! — Olharam todos os blocos de pedra que resplandeciam ao sol, e olharam através do rio a terrível muralha do Arizona.
Ainda precisamos atravessar o deserto — disse Tom. — Precisamos de água e descanso.
A estrada corria paralela ao rio, e o dia já tinha avançado bastante quando os veículos escaldantes chegavam a Needles, onde o rio corria veloz entre os juncos.
Os Joad e os Wilson estacaram junto ao rio, e ficaram sentados nos veículos a olhar o maravilhoso espetáculo da correnteza que fazia inclinar ligeiramente as hastes dos juncos. À margem do rio havia um pequeno acampamento, onze tendas rentes à água, junto da relva encharcada. E Tom debruçou-se pela janela do caminhão.
A gente pode parar aqui um pouco, hem?
Uma mulher obesa, que esfregava roupa num balde, ergueu o olhar.
Nós não semo dono disso, moço. Pode ficá, se quisé. Mas não demora e vem aí um polícia pra olhá as suas coisa, ouviu? — E tornou a esfregar a roupa ao sol.
Ambos os veículos estacionaram numa clareira que havia no meio da relva. As tendas foram retiradas; a tenda dos Wilson foi armada e a lona dos Joad estendida sobre as estacas ligadas por cordas.
Winfield e Ruthie caminharam lentamente através dos salgueiros, até os juncos. Ruthie disse, com excitação abafada:
Califórnia. A gente tá na Califórnia!
Winfield arrancou uma haste e desfolhou-a, e botou a polpa branca na boca e mastigou-a. Os dois entraram um pouco na água e ficaram parados, quietinhos, com a água pelas pernas.
A gente inda tem que passar o deserto — disse Ruthie.
Como é o deserto?
Não sei. Eu vi uma vez uma figura com o deserto. Tinha osso por todos os lados.
Osso de gente?
Acho que sim. Mas a maioria era osso de boi.
A gente vai ver esses ossos?
Talvez. Eu não sei. Nós vamo viajar de noite, o Tom disse. Diss’que até a alma da gente vai secar se viajar de dia.
É bem fresco aqui, né? — disse Winfield, e enfiou os dedos dos pés na areia do fundo do rio.
Eles ouviram a mãe chamar:
Ruthie! Winfield! Voltem depressa. — Atenderam ao chamado e foram voltando devagar, através das hastes de juncos e dos salgueiros.
Havia silêncio nas outras tendas. Por um instante, quando os dois veículos tinham chegado, várias cabeças emergiram de entre as cortinas de lona, para logo se retirarem. As tendas das duas novas famílias estavam armadas e os homens estavam reunidos.
Tom disse:
Bom, eu vou tomar um banho. Isso mesmo, é o que vou fazer... antes de ir dormir. Como vai a avó, depois que dorme na tenda?
Não sei — disse o Pai. — Não consegui acordar ela. — Virou a cabeça em direção à tenda e ficou à escuta por um instante. Uma voz uivante, choramingas, veio de sob a tenda. A mãe foi depressa ver o que era.
Ela acordou — disse Noah. — A noite toda eu achei que ela ia morrer no carro. Parece que tá ficando louca.
Tom disse:
Que o quê! Ela tá é muito cansada, demais. Precisa é descansar. Se não descansar já, não vai durar muito. Quem vem comigo? Vou me lavar e depois vou dormir o dia todo. — Foi andando e os outros seguiram-no. Na beira do rio, tiraram a roupa entre os salgueiros e depois entraram na água e sentaram-se. Muito tempo ficaram sentados assim, os calcanhares enterrados na areia, e somente as cabeças lhes apareciam à superfície.
Puxa! Bem que eu tava precisando deste banho — disse Al. Pegou um punhado de areia e começou a esfregar-se com ele. Sentados na água, eles iam olhando os picos agudos que se chamam Agulhas e as brancas montanhas rochosas do Arizona.
E a gente passou essa bruta montanha — disse o pai cheio de admiração.
Tio John mergulhou a cabeça na água.
Bom, aqui estamos. Aqui já é a Califórnia, e nem parece ter tanta fartura assim.
Precisamos atravessar o deserto ainda — disse Tom. — E ouvi dizer que isso não era nada sopa.
Noah perguntou:
Vai ser hoje de noite?
Que é que o senhor acha, pai? — perguntou Tom.
Bem, não sei, não. Um pequeno descanso não seria nada mau pra todos, principalmente pra avó. Mas também tô com uma vontade danada de chegar logo e começar a trabalhar. A gente só tem quarenta dólares, agora. E é preciso trabalhar, que é pra entrar algum dinheiro.
Sentados na água, eles sentiam a força da correnteza. O pregador deixou que seus braços e suas mãos flutuassem à superfície. Os corpos eram brancos até o pescoço e os pulsos, mas quase castanhos nas mãos e no rosto, com triângulos morenos entre as clavículas. Esfregavam-se todos agora, com areia.
E Noah disse, espreguiçando-se:
Se pudesse, ficava era aqui mesmo, dentro d’água. Nunca ter fome, nem aborrecimentos. Sentado na água, a vida toda, preguiçoso que nem porco na lama.
E Tom, que deixara seu olhar errar através do rio até os picos agudos das montanhas e até as agulhas, disse:
Nunca vi montanhas assim. Esta aqui é uma terra de morte. As montanhas são os ossos da terra. Só queria saber se algum dia encontramos um lugar onde se possa ganhar a vida, sem se precisar arrastar por rochedos e pedras enormes. Vi umas fotografias dum lugar onde a terra era plana e verde, e tinha casinhas brancas, daquelas que a mãe fala. A mãe dava a vida dela por uma casinha dessas. A gente pensa que uma terra assim nem existe. Mas eu vi as fotografia.
Espera só até chegar na Califórnia — disse o pai. — Aí ocê vai ver o que é uma terra bonita.
Mas, pai! A gente está na Califórnia!
John Steinbeck, in As vinhas da ira

Nenhum comentário:

Postar um comentário