A
primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada,
cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi,
quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro
posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é
possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter
comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a
lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela,
corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De
qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse
tempo a noção de pitombas — e as pitombas me serviram para
designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a
generalização era um erro, e isto me perturbou.
Houve
uma segunda aberta entre as nuvens espessas que me cobriam: percebi
muitas caras, palavras insensatas. Que idade teria eu? Pelascontas de
minha mãe, andava em dois ou três anos. A recordação de uma hora
ou de alguns minutos longínquos não me faz supor que a minha cabeça
fosse boa. Não. Era, tanto quanto posso imaginar, bastante
ordinária. Creio que se tornou uma péssima cabeça. Mas daquela
hora antiga, daqueles minutos, lembro-me perfeitamente.
Achava-me
numa vasta sala, de paredes sujas. Com certeza não era vasta, como
presumi: visitei outras semelhantes, bem mesquinhas. Contudo
pareceu-me enorme. Defronte alargava-se um pátio, enorme também, e
no fim do pátio cresciam árvores enormes, carregadas de pitombas.
Alguém mudou as pitombas em laranjas. Não gostei da correção:
laranjas, provavelmente já vistas, nada significavam.
A
sala estava cheia de gente. Um velho de barbas longas dominava uma
negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encostos, seguravam
folhas de papel e esgoelavam-se:
— Um
b com um a — b, a: ba; um b com um e
— b, e: be.
Assim
por diante, até u. Em escolas primárias da roça ouvi
cantarem a soletração de várias maneiras. Nenhuma como aquela, e a
toada única, as letras e as pitombas convencem-me de que a sala, as
árvores, transformadas em laranjeiras, os bancos, a mesa, o
professor e os alunos existiram. Tudo é bem nítido, muito mais
nítido que o vaso. Em pé, junto ao barbado, uma grande moça, que
para o futuro adquiriu os traços de minha irmã natural, tinha nas
mãos um folheto e gemia:
— A,
B, C, D, E.
De
repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me
levaram para lá, quem me levou. Dois ou três vultos desceram ao
quintal, de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão
um risco profundo. Mandaram-me descer também. Resisti: o degrau que
me separava do terreiro era alto demais para as minhas pernas.
Transportaram-me — e adormeci, não cheguei a pisar no barro
vermelho. Acordei numa espécie de cozinha, sob um teto baixo, de
palha, entre homens que vestiam camisas brancas. Um deles perguntou
como se havia de assar o bacalhau e outro respondeu:
— Faz-se
um grajau de madeira.
Grajau?
Que seria grajau? Tornei a mergulhar no sono, um sono extenso.
Disseram-me
depois que a escola nos servira de pouso numa viagem.
Tínhamos
deixado a cidadezinha onde vivíamos, em Alagoas, e entrávamos no
sertão de Pernambuco, eu, meu pai, minha mãe, duas irmãs. Mas pai
e mãe, entidades próximas e dominadoras, as duas irmãs, uma
natural, mais velha que eu, a outra legítima, direita, dois anos
mais nova, eram manchas paradas.
Positivamente
havia pitombas e um vaso de louça, esguio, oculto atrás de um móvel
a que a experiência deu o nome de porta. Surgiram repentinamente a
sala espaçosa, o velho, as crianças, a moça, bancos, mesa,
árvores, sujeitos de camisas brancas. E sons estranhos também
surgiram: letras, sílabas, palavras misteriosas. Nada mais.
E
a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por
estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido negro.
Passam
através desses rasgões figuras indecisas: Amaro Vaqueiro, caboclo
triste, encourado num gibão roto; Sinha Leopoldina, companheira
dele, vistosa na chita cor de sangue; mulheres que fumavam cachimbo.
Mais vivo que todos, avulta um rapagão aprumado e forte, de olhos
claros, risonho.
Calçava
alpercatas, vestia a camisa branca de algodão que usa o sertanejo
pobre do Nordeste, áspera, encardida, ordinariamente desabotoada, as
pontas das aberturas laterais presas em dois nós. Chamava-se José
Baía e tornou-se meu amigo, com barulho, exclamações, onomatopeias
e gargalhadas sonoras.
Sentado,
escanchava-me nas pernas e sacudia-me, sapateava, imitando o galope
de um cavalo; em pé, segurava-me os braços, punha-se a rodopiar,
cantando:
Eu
nasci de sete meses,
Fui
criado sem mamar.
Bebi
leite de cem vacas
Na
porteira do curral.
Quando
me soltava, eu cambaleava, zonzo. Um dia, livre dos giros
vertiginosos, saí aos tombos, esbarrei com um esteio e ganhei um
calombo grosso na testa.
Datam
desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me
desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou
fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer
viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o
que me transtornou.
Apareceram
lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos
nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio.
A
cabeçada valente que dei, solto das garras de José Baía, firmou o
copiar, sustentado por colunas robustas, de aroeira ou sucupira. Ali
perto era a sala, de janelas sempre fechadas, armas de fogo e
instrumentos agrícolas pelos cantos, arreios suspensos em ganchos,
teias de aranha, a rede segura em armadores de pau, grosseiros
caixões verdes, depósitos de cereais, se não me engano. No
corredor desembocavam camarinhas cheias de treva e a sala de jantar.
A cozinha desapareceu, mas o quintal subsiste, duro e nu, sem flores,
sem verdura, tendo por único adorno, ao fundo, junto a montes de
lixo, um pé-de-turco, ótimo para a gente se esconder nas
perseguições. Desse lado o pé-de-turco marcava o limite do mundo.
Do outro lado a terra se estendia por longas distâncias. A casa, de
material rijo, estava completa por dentro. Mas exteriormente havia
nela singularidades. O oitão esquerdo era de altura incrível; à
direita faltava oitão, não sei como o telhado podia equilibrar-se.
Talvez currais e chiqueiros, construídos na vizinhança, ocultassem
um dos muros. Chiqueiros e currais esvaíram-se.
Durante
um redemoinho brabo notei esquisitices. Nuvens de poeira enrolaram-se
em briga feia, escureceu, um rumor diferente dos outros rumores
cresceu, espalhou-se, e no meio da terrível desordem um couro de boi
espichado quebrou o relho que o amarrava a um galho e voou no
turbilhão. Uma senhora magra, minha indistinta mãe, tentou com
desespero fechar uma porta balançada pela ventania. Folhas e
garranchos entraram na sala, um bicho zangado soprou ou assobiou, a
mulher agitou-se pendurada na chave. Findo o despropósito, vi a
pessoinha com a mão envolta em panos. Um dedo inchou demais, e foi
necessário que lhe cortassem o anel com lima. Em seguida perdi a
moça de vista. E a letargia continuou.
O
pátio, que se desdobrava diante do copiar, era imenso, julgo que não
me atreveria a percorrê-lo. O fim dele tocava o céu. Um dia,
entretanto, achei-me além do pátio, além do céu. Como cheguei ali
não sei. Homens cavavam o chão, um buraco se abria, medonho,
precipício que me encolhia apavorado entre montanhas erguidas nas
bordas. Para que estariam fazendo aquela toca profunda? Para que
estariam construindo aqueles montes que um pó envolvia como fumaça?
Retraí-me na admiração que me causava o extraordinário
formigueiro. As formigas suavam, as camisas brancas tingiam-se,
enegreciam, ferramentas cravavam-se na terra, outras jogavam para
cima o nevoeiro que formava os morros.
Nova
solução de continuidade. As sombras me envolveram, quase
impenetráveis, cortadas por vagos clarões: os brincos e a cara
morena de Sinha Leopoldina, o gibão de Amaro Vaqueiro, os dentes
alvos de José Baía, um vulto de menina bonita, minha irmã natural,
vozes ásperas, berros de animais ligando-se à fala humana. O
moleque José ainda não se tinha revelado. Meu pai e minha mãe
conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços
deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos
grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas,
tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo
gasto. Retalhos e sons dispersavam-se. Medo. Foi o medo que me
orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se
afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me
impuseram obediência e respeito. Habituei-me a essas mãos, cheguei
a gostar delas. Nunca as finas me trataram bem, mas às vezes
molhavam-se de lágrimas — e os meus receios esmoreciam. As
grossas, muito rudes, abrandavam em certos momentos.
O
vozeirão que as comandava perdia a aspereza, um riso cavernoso
estrondava — e os perigos ocultos em todos os recantos fugiam,
deixavam em sossego os viventes miúdos: alguns cachorros, um casal
de moleques, duas meninas e eu.
Graciliano
Ramos, in Infância
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