“Coleman
passara quase toda a sua carreira acadêmica na Athena; homem
extrovertido, arguto, urbano, terrivelmente sedutor, com um toque de
guerreiro e charlatão, em nada se parecia com a figura pedante do
professor de latim e grego (assim, por exemplo, quando ainda era um
jovem instrutor, cometeu a heresia de criar um clube de conversação
em grego e latim). Seu venerável curso introdutório de literatura
grega clássica em tradução — conhecido pela sigla DHM, ou seja,
deuses, heróis e mitos — era popular entre os alunos precisamente
por tudo o que havia nele de direito, franco, enfático e pouco
acadêmico. ‘Vocês sabem como começa a literatura europeia?’,
perguntava ele, após fazer a chamada na primeira aula. ‘Com uma
briga. Toda a literatura europeia nasce de uma briga.’ Então
pegava sua Ilíada e lia para os alunos os primeiros versos.’ ‘Musa
divina, canta a cólera desastrosa de Aquiles... Começa com o motivo
do conflito entre os dois, Agamenon, rei dos homens, e o grande
Aquiles’, E por que é que eles estão brigando, esses dois grandes
espíritos violentos e poderosos? Por um motivo tão simples quanto
qualquer briga de botequim. Estão brigando por causa de uma mulher.
Uma menina, na verdade. Uma menina roubada do pai. Capturada numa
guerra. Ora, Agamenon gosta muito mais dessa menina do que de sua
esposa, Clitemnestra. ‘Clitemnestra não é tão boa quanto ela’,
diz ele, ‘nem de rosto, nem de corpo’. É uma explicação
bastante direta do motivo pelo qual ele não quer abrir mão da tal
moça, não é? Quando Aquiles exige que Agamenon a devolva ao pai a
fim de apaziguar Apolo, o deus cuja ira assassina foi despertada
pelas circunstâncias em que a moça fora raptada, Agamenon se
recusa: diz que só abre mão da namorada se Aquiles lhe der a dele
em troca. Com isso, Aquiles fica ainda mais enfurecido. Aquiles, o
adrenalina: o sujeito mais inflamável e explosivo de todos os que já
foram imaginados pelos escritores; especialmente quando seu prestígio
e seu apetite estão em jogo, ele é a máquina de matar mais
hipersensível da história da guerra. Aquiles, o célebre: apartado
e alijado por causa de uma ofensa à sua honra. Aquiles, o grande
herói, tão enraivecido por um insulto — o insulto de não poder
ficar com a garota — acaba se isolando e se excluindo, numa atitude
desafiadora, da sociedade que precisa muitíssimo dele, pois ele é
justamente seu glorioso protetor. Assim, uma briga, uma briga brutal
por causa de uma menina, de seu corpo jovem e das delícias da
rapacidade sexual: é assim, nessa ofensa ao direito fálico, à
dignidade fálica, de um poderosíssimo príncipe guerreiro, que tem
início, bem ou mal, a grande literatura de ficção europeia, e é
por isso que, quase três mil anos depois, vamos começar nosso
estudo aqui...”
Philip
Roth, in A mancha humana
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