Eu
conheço UM lugarzinho...
Quantas
vezes você já não ouviu esta frase? Dita por pessoas que conhecem
todos os lugares óbvios que você também conhece mas conhecem um
que você não pode conhecer, porque ninguém conhece, só elas? O
curioso é que é sempre um lugarzinho, nunca é um lugar grande ou
apenas um lugar. Há pessoas que ostentam lugarzinhos como outras
ostentam riqueza. Especializam-se em lugarzinho, têm a volúpia do
lugarzinho, só para poderem nos impressionar depois.
Nem
sempre a frase é dita com a intenção de humilhar quem talvez tenha
passado pelo lugarzinho — o barzinho, o restaurantezinho, o
hotelzinho, a cidadezinha, às vezes até o paizinho — sem se dar
conta.
— Vai
dizer que você esteve em Luxemburgo e não visitou Luxemburguette, o
único país do mundo que é só uma esquina?!
Pode
haver o sincero desejo de compartilhar uma descoberta. Devo muitos
prazeres a indicações de amigos de lugarzinhos que não estão nos
guias e nos caminhos normalmente percorridos, como o restaurante
L’Hangar, em Paris, impossível de ser localizado por acaso, já
que fica num “impasse”, uma rua que não leva a lugar nenhum. O
Hangar, segundo o informante, pertence ao filho da escritora
Marguerite Duras, que (uma característica de quem conhece
lugarzinhos é conhecer também as fofocas exclusivas dos
lugarzinhos) não se dá com a mãe. Fica no “impasse” Berthaud,
que sai da avenida Beaubourg, bem perto do Centre Pompidou, também
chamado de o mausoléu do Robocop. Não importa o que você pedir
como prato principal no Hangar, não deixe de pedir, como sobremesa,
o demi-cuit, uma espécie de pudim de chocolate cujo segredo
do sucesso é vir para a mesa segundos antes de ficar pronto. Coisas
de lugarzinhos.
O
melhor de conhecer lugarzinhos, no entanto, é poder dar inveja a
quem não os conhece. Eu mesmo já descobri a minha cota de
lugarzinhos e os ostento sem misericórdia. Vai dizer que você já
andou pela região do Périgord, na França, e não foi a
Collonge-la-rouge, uma cidadezinha medieval toda da mesma cor
vermelha? Pobre de você. Quando for, coma omelettes com
trufas negras no Relais Saint-Jacques de Compostelle, que tem este
nome porque Collonge ficava na rota de peregrinação para Santiago
de Compostella, no norte da Espanha. Se quiser, use o meu nome quando
pedir as omelettes. Elas virão perfeitas. É verdade que se
não usar o meu nome elas também estarão perfeitas, pois ninguém
saberá de quem você está falando, mas que diabo.
Há
casos em que o lugarzinho não é nada do que disseram. Casos em que
houve mais ficção e desejo de arrasar você do que verdade na
descrição do lugarzinho. Falaram do ambiente aconchegante e do
garçom engraçado mas esqueceram de dizer que o bife tanto pode ser
comido como usado para calçar a mesa. Ou então a sua experiência
simplesmente não reproduz a experiência de quem indicou o
lugarzinho, e naquele hotelzinho rústico tão elogiado e recomendado
lhe botam num quarto já ocupado, por um rato, e depois ainda cobram
a ocupação dupla. E existe o fato inescapável de que o mesmo lugar
pode ser, para alguns, um autêntico lugarzinho, com todas as
conotações de revelação e boas surpresas do termo, e para outros
um lugarzinho no sentido de porcaria.
Uma
versão: “Chegamos a esta cidadezinha maravilhosa que não está
nem no mapa e em que nenhuma casa tinha menos de 400 anos e a
Margarida perguntou para um amor de velhinho ‘dove é il vecê’ e
ele não entendia, e chamou toda a família dele e ninguém entendia,
depois juntou toda a cidade e ninguém entendia, até que veio o
prefeito, que sabia inglês, e a Margarida perguntou ‘where is the
vee cee?’ e o prefeito perguntou ‘What?’ e então a Margarida
começou a fazer barulho de xixi, ‘ssshhh, ssshhh’ e o prefeito
perguntou ‘What?’ de novo, só que baixinho, e aí nós caímos
na risada, e a Margarida riu tanto que só continuou perguntando onde
era o banheiro por farra, porque não precisava mais, foi tão
simpático!”
Outra
versão: “Chegamos a este lugar caindo aos pedaços, não sei por
que eles gostam tanto de velharia, e imagina que ninguém sabia o que
era WC, a Margarida apertada tendo que perguntar para um monte de
ignorantes que não falavam língua nenhuma onde era, até que
apareceu o manda-chuva, eles devem eleger o mais ignorante como
prefeito, que só complicou mais as coisas e no fim não adiantava
mais, coitada da Margarida. Mas o que se pode esperar de uma cidade
que não está nem no mapa?”
Mortal,
no entanto, é quando o lugarzinho é usado como arma numa competição
de vaidades turísticas.
— Nós
fomos jantar no Tour D’Argent e...
— Não
me diga que vocês foram ao Tour D’Argent e não foram ao Petit
Tour.
— O
quê?
— O
Petit Tour. Um lugarzinho que nós descobrimos. Fica do lado!
— Nunca
ouvi falar.
— Eles
não querem muita propaganda. Cabeça a minha. Devia ter avisado
vocês...
— É
bom?
— Está
brincando? É onde os cozinheiros do Tour D’Argent vão comer,
depois de enganarem os turistas.
Claro
que o Petit Tour não existe. Pelo menos, não que eu saiba. Mas para
quem usa o lugarzinho como arma, o efeito é mais importante do que a
verdade.
A
coisa às vezes chega ao exagero.
— O
Louvre é espetacular, não é?
— É.
Mas ao lado do Louvre tem UM museuzinho...
O
que pode deixar o outro com a incômoda suspeita de que viu a Mona
Lisa errada.
O
lugarzinho tem que ser, antes de mais nada, desconhecido, ou só
conhecido por uma minoria privilegiada, ou — para ser um lugarzinho
ainda mais lugarzinho — só conhecido por uma minoria do lugar. Seu
charme não pode ser intencional. Isto é, o lugarzinho não pode
saber que tem charme, senão não é mais lugarzinho. E como os
meteoritos, que só são detectados no céu quando se desintegram, os
lugarzinhos só são descobertos pouco antes de deixarem de ser, pois
a própria descoberta determina a perda das credenciais de
lugarzinho. Se alguém o recomendou a você, e você, claro, não vai
perder a oportunidade de também poder dizer “Eu conheço UM
lugarzinho...” a outros, não demorará muito antes que o
lugarzinho passe a ser frequentado só por pessoas atrás de
lugarzinhos. Perderá toda a espontaneidade. Os preços aumentarão e
é possível que o próprio lugar também aumente, perdendo o direito
ao diminutivo. Se o encanto do lugarzinho era o menu escrito a giz
num quadro-negro, e errado, na sua visita seguinte você descobrirá
que eles estão errando a grafia dos pratos de propósito e em pouco
tempo estarão vendendo pôsteres com “o nosso famoso menu mal
escrito”. E é fácil prever o que acontecerá depois. Você dirá
para alguém, convencido de que está abafando:
— Eu
conheço UM lugarzinho...
E
ouvirá:
— Não,
não. Esse eu conheço. Não dá mais para ir lá. Agora, do lado
dele tem UM lugarzinho…
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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