(Inspirado
no relato da mulher do régulo de Namarói, Zambézia, recolhido pelo
padre Elia Ciscato)
Vou
contar a versão do mundo, razão de brotarmos homens e mulheres.
Aproveitei a doença para receber esta sabedoria: o que vou contar me
foi passado em sonho pelos antepassados. Não fosse isso nunca eu
poderia falar. Sou mulher, preciso autorização para ter palavra.
Estou contando coisas que nunca soube. Por minha boca falam, no calor
da febre, os que nos fazem existir e nos dão e retiram nossos nomes.
Agora, o senhor me traduza, sem demoras. Não tarda que eu perca a
voz que agora me vai chegando.
No
princípio, todos éramos mulheres. Os homens não haviam. E assim
foi até aparecer um grupo de mulheres que não sabia como parir.
Elas engravidavam mas não devolviam ao mundo a semente que consigo
traziam. Aconteceu então o seguinte: as restantes mulheres pegaram
nessas inférteis e as engoliram, todas e inteiras. Ficaram três
dias cheias dessa carga, redondas de uma nova gravidez. Passado esse
tempo as mulheres que haviam engolido as outras deram à luz. Esses
seres que estavam dentro dos ventres ressurgiram mas sendo outros,
nunca antes vistos. Tinham nascido os primeiros homens. Estas
criaturas olhavam as progenitoras e se envergonhavam. E se acharam
diferentes, adquirindo comportamentos e querendo disputas. Eles
decidiram transitar de lugar.
Passaram
o regato, emigraram para o outro lado do monte Namuli. Assim que se
assentaram nessa outra terra viram que o fiozinho de água
engrossava. O regato passava a riacho, o riacho passava a rio. Na
margem onde se transferiram os homens comiam apenas coisas cruas. E
assim ficaram durante tempos. Uma certa noite eles viram, do outro
lado, o acender das fogueiras. As mulheres sabiam colher a chama,
semeavam o fogo como quem conhece as artes da semente e da colheita.
E os homens disseram:
— As
mulheres têm uma parte vermelha: é dela que sai o fogo.
Então,
o muene que chefiava os homens mandou que fossem buscar o fogo e lho
entregassem intacto. E dois atravessaram o rio para cumprir a ordem.
Mas eles desconseguiram: as chamas se entornavam, esvaídas. O fogo
não tinha competência de atravessar o rio.
— O
fogo cansa-se, muene.
Assim
disseram ao muene. Desiludido, o chefe atribuiu-se a si mesmo a
missão. Atravessou a corrente em noite de chuva cheia. O rio estava
em maré plena, tempestanoso. O muene perdeu o corpo, deixou escapar
a alma. Acordou na outra margem, mais molhado que peixe. Sentiu que o
puxavam, lhe davam ar e luz. Viu então uma mulher que lhe acudia,
acendendo um foguinho para que secassem suas roupas. O homem lhe
falou, confessando desejos, invejas e intenções. A mulher disse:
— O
fogo é um rio. Deve-se colher pela fonte.
— Essa
fonte: nós não sabemos o seu lugar.
Era
de noite, a mulher chamou o muene e fez com que se deitasse sobre a
terra. E ela se cobriu nele, corpo em lençol de outro corpo. Nenhum
homem nunca havia dormido com aquelas da outra margem. A mulher, no
fim, lhe beijou os olhos e neles ficou um sabor de gota. Era uma
lágrima de sangue, ferida da terra. A lágrima chorava, clamando que
se costurassem as duas margens em que sua carne se havia aberto. A
mão dele se ensonou sobre o suave abismo dela.
Anichado
no colo da mulher, o homem desfiou o seguinte sonho: que ele era o
último homem. E que daquele cruzar de corpos que experimentara
aquela noite ele se ferira, seu corpo se abrira, veia escancarada.
Ele vê o sangue se espalhar no rio e desmaia. Quando recupera vê
que a inteira água do rio se convertera em sangue. Segue o curso do
rio e repara como o vermelho se vai espessando, líquido em coágulo,
coágulo em massa. Uma figura humana se vai formando. Aos poucos,
nasce uma mulher. E, no imediato, o rio volta a escorrer, água
límpida e pura. Esse foi o sonho. Do qual o muene se esqueceu mesmo
antes de acordar.
O
chefe madrugou e regressou à sua margem. Na passagem viu que o rio
se acalmara, águas em jamais visto sossego. O homem chegou aos
outros, sôfrego como se tivesse desaprendido respirar. Os outros lhe
olharam, admirados. Trazia ele um fogo dentro de si? O muene ainda
procurava o fôlego:
— Ouçam:
lá do outro lado...
E
tombou, sem mais. Os outros foram, mandados pelo bicho de quererem
saber. Passavam depois de o sol se esconder. De cada vez que um
regressava o rio estreitava, mais a jeito de riacho. Afinal, havia
uma margem desconhecida da noite, o outro lado da vida. E um por um,
todos realizaram a visita, para além do rio. No final, o curso de
água voltou a ser o que tinha sido: um fiozito, timiúdo. O mundo já
quase não dispunha de dois lados. Os homens, aos poucos, decidiam
ficar no território das mulheres. Na outra, antiga margem, nenhum
homem restou.
E
os tempos circularam. Um dia uma mulher deu à luz. Os homens se
espantaram: eles desconheciam o ato do parto. A grávida foi atrás
da casa, juntaram-se as outras mulheres e cortaram a criança onde
ela se confundia com a mãe. Decepado o cordão, o um se fez dois, o
sangue separando os corpos como o rio antes cindira a terra.
Os
homens viram isto e murmuraram: se elas cortam nós também podemos.
Afiaram as facas e levaram os rapazes para o mato. Assim nasceu a
circuncisão. Cortavam os filhos para que eles entrassem no mundo e
se esquecessem da margem de lá, de onde haviam migrado os homens
iniciais. E os homens se sentiram consolados: podiam, ao menos, dar
um segundo parto. E assim se iludiram ter poderes iguais aos das
mulheres: geravam tanto como elas. Engano deles: só as mulheres
cortavam o laço de uma vida em outra vida. Nós deixamos assim, nem
procuramos neles outro convencimento. Porque, afinal, ainda hoje eles
continuam atravessando a correnteza do rio para buscar em nós a
fonte do fogo.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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