segunda-feira, 29 de abril de 2019

Uma tentativa de explicação

O Sr. José Osório Oliveira, ensaísta e crítico português, a propósito de um concurso da Revista Acadêmica, para saber quais os melhores romances brasileiros, escreveu um artigo em que, depois de citar numerosos livros de literatura brasileira, dela se despedia, mal dissimulando um rancor justo. Esse artigo, anterior à Blitzkrieg, ainda é oportuno. Depois dele muita gente nasceu, mais gente morreu, e os habitantes de cidades grandes começaram a dormir debaixo do chão como tatus.
Mas, graças a Deus, estamos longe disso, pelo menos por enquanto, e podemos, como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, beber honradamente a nossa cerveja. Bebendo a cerveja, com fatalismo, esperando ser chamados ao tribunal divino antes que ela se acabe, esquecemos os bombardeios aéreos, pensamos nas letras nacionais, coitadas, e no descontentamento dum amigo que se cansou de nos prestar favores e afinal se aborreceu da nossa ingrata indiferença.
O Sr. José Osório de Oliveira tem razão. Contudo várias pessoas ficaram magoadas com ele, talvez igualmente com razão. O que há neste caso é apenas um equívoco; tanto nos diferençamos dos europeus que já nem nos entendemos. Será bom tentarmos, embora tarde, uma explicação desse negócio.
O escritor português desejou que nos comportássemos como se estivéssemos à direita do Atlântico, ao norte; aqui imaginaram que o Sr. José Osório de Oliveira , tendo vivido no Rio, conhecesse os nossos hábitos e os tolerasse. Para o estrangeiro do Velho Mundo a correspondência é coisa séria. O cidadão envia um bilhete a outro, não obtém resposta — e naturalmente se ofende: é como se falasse a um indivíduo e este se conservasse calado. Nós, brasileiros, sabemos o que se deve fazer, mas procedemos de modo contrário. Deixamos para amanhã as conversas com pessoas ausentes, arranjamos novo prazo, as cartas fervilham, envelhecem — e excelentes relações desanimam.
É possível que a nossa descortesia seja involuntária. Talvez preguiça, talvez excesso de escrúpulo, receio de, arrumando algumas linhas à pressa, cometer leviandades, dizer inconveniências. A verdade é que somos assim. Não agradecemos os livros que nos remetem, não agradecemos as críticas que nos dispensam. Apoiamo-nos em desculpas frágeis: os livros ainda não foram lidos ou nos desagradam, recusamos o juízo do crítico. Evasivas: se admirarmos os livros, aceitarmos a crítica, também permaneceremos em silêncio.
Certamente nos consideram bárbaros. E somos. A extrema urbanidade reside no extremo oriente. À medida que avançam para oeste, os povos se tornam cada vez menos mesureiros. No Brasil atingimos a culminância.
Nossos vizinhos não se espantam. Por estes meridianos mais próximos o defeito a que nos referimos é comum. Se recebermos uma proposta de qualquer país da América do Sul e, contrariando o mau costume, nos interessarmos por ela, é quase certo que o avião da Panair vai levar ao proponente um papel que já não terá para ele nenhuma significação.
Realmente há entre nós quem ponha os seus escritos em ordem e numa gavetinha do bureau guarde as folhas timbradas, os envelopes, o frasco de goma e a caixa de selos. Isto, porém, é exceção: as censuras que nos vêm de Lisboa mostram que em geral somos desleixados.
Poderemos justificar-nos dizendo que possuímos ideias escassas, as indispensáveis à composição da nossa minguada literatura. Seremos com efeito literatos? Este nome encerrava ainda há pouco um sentido prejudicial, herança provável do tempo em que arte era indício de boêmia e sujeira. Escrevemos efetivamente, mas desconfiados, no íntimo desgostosos com um gênero de trabalho que não pode ser profissão. A nossa mercadoria vai sem verniz para o mercado e não nos desperta, posta em circulação, nenhum entusiasmo. Somos diletantes. Receamos que nos discutam, que nos analisem, que nos exibam os aleijões. Se eles começarem a ser indicados, multiplicar-se-ão, ocuparão toda a obra. A referência que nos contenta é o elogio bem derramado. Não faz mal que seja idiota: precisamos vê-lo, repeti-lo, convencer-nos de que realizamos qualquer coisa notável.
Trabalhamos um pouco à toa, e o pensamento que surge no café e briga às vezes com outros pensamentos acha meio de estabelecer-se: em falta de argumentos, é defendido com gritos. Esses gritos são impossíveis na carta, onde as incongruências avultam. Gostamos de falar, discutir — e opiniões antagônicas já têm rolado no chão, atracadas, resistindo a murros. Somos bastante expansivos, mas a expansão só se manifesta cara a cara. Separados arrefecemos, murchamos. Para que nos gastarmos em correspondência que nos roubaria grande parte do tempo? Desejamos ler sobre nós o que julgamos conveniente. Podemos até redigir nós mesmos os louvores, celebrar-nos com exagero. Há quem faça isto à força de imaginação, enganar-se, acreditar no panegírico, chegar quase a apertar a mão do pseudônimo.
Graciliano Ramos, in Garranchos (Revista Acadêmica º 54, maio/1941)

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