O
Sr. José Osório Oliveira, ensaísta e crítico português, a
propósito de um concurso da Revista Acadêmica, para saber
quais os melhores romances brasileiros, escreveu um artigo em que,
depois de citar numerosos livros de literatura brasileira, dela se
despedia, mal dissimulando um rancor justo. Esse artigo, anterior à
Blitzkrieg, ainda é oportuno. Depois dele muita gente nasceu,
mais gente morreu, e os habitantes de cidades grandes começaram a
dormir debaixo do chão como tatus.
Mas,
graças a Deus, estamos longe disso, pelo menos por enquanto, e
podemos, como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, beber
honradamente a nossa cerveja. Bebendo a cerveja, com fatalismo,
esperando ser chamados ao tribunal divino antes que ela se acabe,
esquecemos os bombardeios aéreos, pensamos nas letras nacionais,
coitadas, e no descontentamento dum amigo que se cansou de nos
prestar favores e afinal se aborreceu da nossa ingrata indiferença.
O
Sr. José Osório de Oliveira tem razão. Contudo várias pessoas
ficaram magoadas com ele, talvez igualmente com razão. O que há
neste caso é apenas um equívoco; tanto nos diferençamos dos
europeus que já nem nos entendemos. Será bom tentarmos, embora
tarde, uma explicação desse negócio.
O
escritor português desejou que nos comportássemos como se
estivéssemos à direita do Atlântico, ao norte; aqui imaginaram que
o Sr. José Osório de Oliveira , tendo vivido no Rio, conhecesse os
nossos hábitos e os tolerasse. Para o estrangeiro do Velho Mundo a
correspondência é coisa séria. O cidadão envia um bilhete a
outro, não obtém resposta — e naturalmente se ofende: é como se
falasse a um indivíduo e este se conservasse calado. Nós,
brasileiros, sabemos o que se deve fazer, mas procedemos de modo
contrário. Deixamos para amanhã as conversas com pessoas ausentes,
arranjamos novo prazo, as cartas fervilham, envelhecem — e
excelentes relações desanimam.
É
possível que a nossa descortesia seja involuntária. Talvez
preguiça, talvez excesso de escrúpulo, receio de, arrumando algumas
linhas à pressa, cometer leviandades, dizer inconveniências. A
verdade é que somos assim. Não agradecemos os livros que nos
remetem, não agradecemos as críticas que nos dispensam. Apoiamo-nos
em desculpas frágeis: os livros ainda não foram lidos ou nos
desagradam, recusamos o juízo do crítico. Evasivas: se admirarmos
os livros, aceitarmos a crítica, também permaneceremos em silêncio.
Certamente
nos consideram bárbaros. E somos. A extrema urbanidade reside no
extremo oriente. À medida que avançam para oeste, os povos se
tornam cada vez menos mesureiros. No Brasil atingimos a culminância.
Nossos
vizinhos não se espantam. Por estes meridianos mais próximos o
defeito a que nos referimos é comum. Se recebermos uma proposta de
qualquer país da América do Sul e, contrariando o mau costume, nos
interessarmos por ela, é quase certo que o avião da Panair vai
levar ao proponente um papel que já não terá para ele nenhuma
significação.
Realmente
há entre nós quem ponha os seus escritos em ordem e numa gavetinha
do bureau guarde as folhas timbradas, os envelopes, o frasco
de goma e a caixa de selos. Isto, porém, é exceção: as censuras
que nos vêm de Lisboa mostram que em geral somos desleixados.
Poderemos
justificar-nos dizendo que possuímos ideias escassas, as
indispensáveis à composição da nossa minguada literatura. Seremos
com efeito literatos? Este nome encerrava ainda há pouco um sentido
prejudicial, herança provável do tempo em que arte era indício de
boêmia e sujeira. Escrevemos efetivamente, mas desconfiados, no
íntimo desgostosos com um gênero de trabalho que não pode ser
profissão. A nossa mercadoria vai sem verniz para o mercado e não
nos desperta, posta em circulação, nenhum entusiasmo. Somos
diletantes. Receamos que nos discutam, que nos analisem, que nos
exibam os aleijões. Se eles começarem a ser indicados,
multiplicar-se-ão, ocuparão toda a obra. A referência que nos
contenta é o elogio bem derramado. Não faz mal que seja idiota:
precisamos vê-lo, repeti-lo, convencer-nos de que realizamos
qualquer coisa notável.
Trabalhamos
um pouco à toa, e o pensamento que surge no café e briga às vezes
com outros pensamentos acha meio de estabelecer-se: em falta de
argumentos, é defendido com gritos. Esses gritos são impossíveis
na carta, onde as incongruências avultam. Gostamos de falar,
discutir — e opiniões antagônicas já têm rolado no chão,
atracadas, resistindo a murros. Somos bastante expansivos, mas a
expansão só se manifesta cara a cara. Separados arrefecemos,
murchamos. Para que nos gastarmos em correspondência que nos
roubaria grande parte do tempo? Desejamos ler sobre nós o que
julgamos conveniente. Podemos até redigir nós mesmos os louvores,
celebrar-nos com exagero. Há quem faça isto à força de
imaginação, enganar-se, acreditar no panegírico, chegar quase a
apertar a mão do pseudônimo.
Graciliano
Ramos, in Garranchos (Revista Acadêmica º 54, maio/1941)
Nenhum comentário:
Postar um comentário