Uma
fogueira ardia no fundo da vala, à margem da estrada. Tom tinha
feito, com estacas e arame, uma armação de onde pendiam duas
panelas em que a água borbulhava furiosamente. De sob as tampas das
panelas escapavam rolos de vapor branco. Rosa de Sharon estava
ajoelhada no chão, um pouco afastada do calor intenso da fogueira, e
tinha uma colher na mão. Ela viu a mãe saindo da tenda, ergueu-se e
foi ao encontro dela.
— Mãe
— disse —, preciso perguntar uma coisa à senhora.
— Cê
já está com medo outra vez? — inquiriu a mãe. — Queria passar
todos os nove meses sem ter um aborrecimento?
— Mas...
isso não vai fazer mal à criança?
A
mãe disse:
— Tem
um dito assim: “Uma criança que nasce no pesar não terá do que
se lamentar.” Não é mesmo, senhora Wilson?
— Sim,
também já ouvi dizer isso — disse Sairy. — E tem outra frase
assim: “Quem com muita alegria nascer, em muita dor vai viver.”
— Mas
eu estou tremendo tanto por dentro! — disse Rosa de Sharon.
— Todos
nós estamos — disse a mãe. — Bem, agora vai tomar conta das
panelas.
À
margem do anel de luz que rodeava a fogueira, os homens se agruparam.
Por ferramenta, tinham apenas uma pá e uma picareta. O pai demarcou
o lugar — dois metros e meio de comprimento e um de largura.
Revezavam-se no trabalho. O pai rasgava a terra com a picareta e tio
John jogava-a de lado com a pá. Depois Al pegava na picareta e Tom
na pá, e depois vinham Noah e Connie, e assim sucessivamente. E a
cova ia ficando mais e mais funda, pois que eles trabalhavam
incessante e vigorosamente. A terra voava da cova em uma chuva de
torrões. Quando já estava numa cova retangular que lhe vinha até a
altura dos ombros, Tom disse:
— Mais
fundo ainda, pai?
— Tem
que ser bastante funda. Só um pouco mais. Sai daí agora, Tom. Vai
escrever aquele papel que falamos.
Tom
içou-se da cova e Noah tomou o lugar dele. Tom foi para junto da
mãe, que estava avivando o fogo.
— A
senhora tem papel branco e caneta, mãe?
A
mãe sacudiu vagarosamente a cabeça:
— Não.
Justamente isso a gente não trouxe... — Lançou um olhar para
Sairy. E a pequena senhora foi depressa à tenda e voltou com uma
Bíblia e metade de um lápis.
— Tome
— falou. — Pode tirar a primeira página da Bíblia, que está em
branco. — E entregou o livro e o lápis a Tom.
Tom
sentou junto ao fogo. Apertou os olhos num gesto de concentração
mental e logo começou a escrever, vagarosa e cuidadosamente,
desenhando letras bem graúdas. — “Este qui aqui jaz é William
James Joad qui morreu di um ataque já muito velho e a família dele
enterrou ele aqui purque não tinha dinheiro pro funeral. Ninguém
matô ele só qui ele teve um ataque e morreu.”
— Mãe,
escuta. — E leu vagarosamente o que tinha escrito.
— Está
bem, até que não soa mal — disse ela. — Mas cê não podia
escrever aí alguma coisa da Bíblia, hem? É pra ser um enterro
religioso. Procura um pedaço bonito da Bíblia e escreve no papel
também.
— Sim,
mas não pode ser uma coisa comprida, porque não dá. O papel é
muito pequeno.
Sairy
disse:
— Que
tal isto: “Que Deus guarde a sua alma”?
— Não
— disse Tom. — Isso soa como se ele tivesse sido enforcado. Deixe
que eu vou ver se copio um pedaço qualquer da Escritura. — Foi
virando as páginas, leu, movimentando os lábios, murmurando
baixinho. — Aqui tem um pedaço bonito e bem curto — falou,
afinal. — “E Lot disse-lhe: Oh, não é assim, Senhor.”
— Mas
isso não quer dizer coisa nenhuma — disse a mãe. — Já que ocê
tá escrevendo, escreve qualquer coisa que tenha sentido.
Sairy
disse:
— Veja
nos Salmos, mais adiante. Nos Salmos sempre se encontra alguma coisa.
Tom
foi folheando e lendo os versículos.
— Aqui
tem um — disse. — É bonito e bem religioso: “Bem-aventurados
aqueles cujas iniquidades são perdoadas e cujos pecados são
esquecidos.” Que tal?
— Este,
sim. É bonito mesmo — disse a mãe. — Pode escrever.
Tom
copiou o trecho cuidadosamente. A mãe enxaguou e limpou um vidro de
conserva; Tom botou nele o papel e atarraxou firmemente a tampa.
— Quem
sabe o reverendo devia ter escrito isso? — disse.
— Não,
o reverendo não é parente nosso — opinou a mãe. Ela pegou o
vidro e entrou com ele na tenda escura. Abriu um dos pontos em que o
lençol estava seguro pelos alfinetes, meteu o vidro entre as mãos
frias do morto e tornou a fechar o lençol. Depois voltou para junto
da fogueira.
Os
homens estavam regressando da cova e suas faces brilhavam de suor.
— Pronto
— disse o pai. Foi com John, Noah e Al à tenda e voltaram,
carregando o comprido embrulho até a beira da cova. O pai pulou para
dentro, pegou o embrulho nos braços e depositou-o cuidadosamente no
fundo. Tio John estendeu as mãos e ajudou o pai a subir novamente. O
pai perguntou:
— Como
é que vai ser com a avó?
— Vou
ver ela — disse a mãe. Foi até o colchão e olhou a anciã por um
instante. Depois voltou à cova. — Ela está dormindo — disse. —
Talvez se aborreça comigo depois, mas não posso acordar ela. Tá
muito cansada.
— Onde
está o pregador? Ele tem que rezar uma coisa qualquer — disse o
pai.
Tom
respondeu:
— Eu
vi ele andando aí pela estrada. Mas ele não gosta mais de rezar.
— Não
gosta de rezar?
— Não
— disse Tom. — Ele não é mais um pregador, disse. E diss’que
não é direito enganar o povo, fazer o papel de pregador, já que
ele não é mais. Aposto que fugiu pra que a gente não pudesse pedir
a ele que rezasse.
Casy
vinha se aproximando em silêncio e ouvira as últimas palavras de
Tom.
— Não
fugi, não — disse. — Quero ajudar vocês, mas não quero tapear
ninguém.
O
pai disse:
— Mas
o senhor não podia dizer umas palavras ao menos? Ainda ninguém da
nossa família foi enterrado sem que alguém dissesse algumas
palavras.
— Bem,
então eu vou dizer — falou o pregador.
Connie
conduziu Rosa de Sharon até a cova. Ela o seguiu com relutância.
— Cê
tem que vir — disse Connie. — Não fica direito. E termina logo.
A
luz da fogueira caía sobre o grupo, destacando-lhes as faces e os
olhos e refletindo-se fracamente nas suas vestes escuras. Todos
tiraram os chapéus. A luz bailava, saltitante, sobre o grupo.
Casy
disse:
— Não
vou demorar muito tempo. — Baixou a cabeça e os outros
seguiram-lhe o exemplo. Casy disse com solenidade:
— Este
ancião aqui viveu longa vida, ao fim da qual morreu. Não sei se era
bondoso ou mau, e isso não importa. Ele viveu, e isto é o
principal. E agora está morto, e acabou-se. Uma vez ouvi alguém
recitar um poema que dizia assim: “Tudo que vive é sagrado.”
Basta pensar um pouco nessas palavras para descobrir que significam
muito mais do que aparentam. Não quero rezar por um homem que está
morto. Ele cumpriu o seu destino. Está como deve estar. Tem uma
tarefa a cumprir, uma tarefa só dele e só há uma maneira de ele
conseguir. E nós, nós também temos uma missão a cumprir, mas não
sabemos exatamente o que fazer, porque são muitos os caminhos que se
abrem diante de nós. E já que tenho que rezar, vou rezar pelas
pessoas que não sabem qual o caminho que devem escolher. O avô,
aqui, já tem seu caminho. Portanto, cubram-no e deixem que ele
cumpra a sua missão. — E Casy ergueu a cabeça.
O
pai disse “Amém”. E todos os outros murmuraram: “Amém.”
Depois, o pai pegou a pá, encheu-a de terra e deixou-a cair
lentamente na cova. Entregou a pá a tio John, e também ele jogou um
pouco de terra na cova. A pá passou de mão em mão, até que todos
os homens cumpriram a sua obrigação. Cumprida esta tarefa, o pai
tomou de novo a pá e foi lançando rapidamente a terra, cobrindo a
cova. As mulheres voltaram para junto da fogueira, a fim de tratarem
de preparar a comida. Ruthie e Winfield olhavam tudo, absortos.
Ruthie
disse solenemente:
— O
avô agora está aí embaixo.
E
Winfield olhou-a com olhos horrorizados. Depois correu até a
fogueira, sentou-se no chão e ficou soluçando.
O
pai tinha enchido a cova somente até a metade. Parou, afegando de
cansaço, e tio John se encarregou de terminar a tarefa. John estava
modelando a saliência sobre o túmulo quando Tom interrompeu-o:
— Escute,
tio John — disse —, se a gente mostrar que isto aqui é um
túmulo, vão querer logo abrir ele. É melhor aplainar a terra em
cima e espalhar capim sobre ela. É o único jeito.
O
pai disse:
— Nem
pensei nisso. Mas uma cova que nem tem forma de cova não fica
direito.
— Paciência.
É o único jeito — disse Tom. — Senão, eles vão logo
desenterrar o avô e então a gente vai passar um mau pedaço por não
ter cumprido a lei. E o senhor sabe o que vai acontecer então
comigo, não sabe?
— É,
eu me esqueci disso. — Tirou a pá da mão de tio John e foi
aplainando a superfície da cova. — No inverno vai afundar —
comentou.
— Que
é que se vai fazer? — disse Tom. — No inverno a gente já está
bem longe. Vamos pisar bem e jogar capim por cima.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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