Por
enquanto, sou Joãotónio. Lhe digo e desdigo, mano: com mulheres me
ponho em modos de ser tropa. Pois todo o encontro com elas se me
aparenta uma batalha. Assim, quando olho uma eu já adianto
adivinhação: como será sua voz? Não me intriga a voz visível mas
a outra, silenciosa, subcorpórea, capaz de tantas linguagens como a
água. Outrodizendo: eu quero adivinhar é os gemidos delas, esse
resvalar de asas na frente do abismo, o arrepio da alma perdendo
morada.
Você
sabe, mano: a voz da pessoa esconde o doce sabor do sussurro. A voz
encobre o suspiro. E agora já ouço a sua pergunta: porquê esta
mania de adivinhar suspiros? É a mesma vontade do general, mano. É
o gosto de antecipar a rendição do adversário. É o desejo de
antescutar como elas se podem requebrar, vencidas e abandonadas.
Às
vezes, penso: no fundo, eu tenho medo de mulher. E você não tem?
Tem, bem que eu sei. As ideias delas nascem num lugar que está fora
do pensamento. Daí vem nosso medo: nós não deciframos o
entendimento das mulheres. Suas superioridades nos medonham, mano.
Por isso, as concebemos em tratos de batalha, versadas adversárias.
Mas volto aos começos, veja você, já eu rangia como uma curva,
derraspado em filosofices. Agora recomece também sua audição.
Ainda
e por enquanto: sou Joãotónio. Lhe conto, agora, a ficção da
minha tristeza. Não é para espalhar por aí. Confio-lhe, mano.
Porque não é um qualquer que publica assim as suas dores. O que vou
escrever é motivo das vergonhas.
Começo
com Maria Zeitona, causadora de todos motivos. Escrevo o nome dessa
mulher e ainda me sucede ouvir sua voz, suavezinha que nem asa. Já
disse: voz de mulher vale tanto como a carne dela. Pelo menos, a mim
me abre os apetites mais que as visões e as tentações.
Como
não ia dizendo: Maria Zeitona me apareceu intacta e intacteável.
Dela se soltava a suspeita da brasa sob a cinza. Seu corpo falava
pelos olhos. E que olhos cristalindos! Casámos, instantâneos. Eu
queria sofrer a promessa daquele fogo. Esposava para consumar aquelas
ardências que tanto enxamearam meus sonhos. Contudo, meu mano: Maria
Zeitona era fria, calafrígida! Eu fazia amores era como se fosse com
uma defunta. O que eu com ela praticava eram relações assexuais. E
assim ela se foi mantendo mais virgem que Maria. Tentei, retentei,
usei as técnicas da minha total experiência. Contudo, mano: não
valeu a pena. Zeitona era lenha molhada: o fogo lhe desvalia.
Girei
as táticas, lhe ofereci valiosas surpresas. Experimentei os namoros
muito prévios. Até lhe beijei desde a terminal dos pés. Não
arrebitou resultado. Beijo não se dá nem se recebe. A vida é que
beija, recíproca. Repito, mano: a vida é que nos beija, dois seres
se resumindo num único infinito. Conversa afilhada? Está certo,
mano, regresso ao cujo assunto de Maria Zeitona.
No
final das campanhas, lhe dei um penúltimato: ou ela se açucarava ou
eu tomaria as medidas inconvenientes. E foi o que não se sucedeu.
Então, mano, me decidi: entregaria Zeitona a uma prostituta. Sim,
Zeitoninha faria um estágio com uma dessas profissionais de roça e
destroca. Assim ela aprenderia a enrodilhar lençóis. Enfim, ela
cometeria o pecado imortal.
Não
demorei a escolher a adequada mestra: seria Maria Mercante, a mais
famosa bacanaleira, mulher bastante inata nas artes de deitar.
Escura, retintadinha, dona de deliciosos recheios. Neste mundo há
dois seres que se apoiam no rabo para subir na vida: o javali e Maria
Mercante. Falei bem com a rabuda:
— Por
favor, lhe ensine as viragens de núpcias!
— Se
descanse, senhor. Corpo de mulher não basta ter qualidades: é
preciso ter qualificações.
E
a qualificada prostituta prosseguiu. Falou conversas deslocadas, quem
sabe se para aumentar o preço das lições. Zeitona deixaria as
virgindades mais arrependida que aquela, única que concebeu sem
pecado. Pois, ela conhecia era a versão do exato: Virgem Maria
tinha, afinal, recusado a visita do Espírito do Santo. Respondera
nestes termos: ter filho sem fazer amor? Qual o gozo? Deitar fora
o prato e ficar com o arroto? É essa a lição que vou dar a
Zeitona: nada de platonismos: sexo à primeira vista.
Lhe
interrompi, desviando a conversa dos anjos para minhas materiais
aflições. Consoante pagamentos antecipados, Maria Mercante aceitou
o serviço. Eu que ficasse repousado: minha esposa sairia do curso
mais acesa que o pino do meio-dia. Que eu me haveria tanto de
despentear com ela que até o colchão reclamaria urgentes remendos.
E Zeitona lá foi para um lugar desses, de baixa seriedade. Vamos lá:
um pronto-a-despir.
Passaram
semanas, o curso terminado, minha esposa regressou a casa. Vinha, de
facto, mudada. Seus modos eram demasiado estranhos mas não da
maneira que eu esperava. Caramba, mano, até ponho vergonha nesta
confissão: Zeitoninha vinha com jeitos de homem! Ela que era tão
metida nos ombros dela agora parecia uma manda-bátegas. Isto é,
isto foi: minha Zeitona se inchara de masculina. E não era só no
momento dos namoros. Era sempre e em tudo. Na voz, inclusive. Tudo
nela se emendara, mano, a pontos de eu ter que coçar as minhas
machas partes para me confirmar. Digo mesmo: ela é que me empurrava
a deitar, acredite, ela é que me desapertava, me ia roubando os
ares. Eu ficava para ali sem nenhuma iniciativa, executado e mandado
como se fosse rapariga iniciada. E a coisa continua até ao presente
atual. O problema, mano, é o seguinte: eu até gosto! Me custa
admitir, tanto que hesito em escrever. Mas a verdade é que me agrada
esta nova condição, sendo-me dada a passiva idade, o lugar de
baixo, a vergonha e o receio.
E
é isto, mano. Me explique, caso lhe chegue o entendimento. Eu não
sei qual pensamento hei-de escolher. Primeiro, ainda me justifiquei:
afinal, a verdade tem versões que até são verdadeiras. Como, por
um exemplo: nos amores sexuais não há macho nem fêmea. Os dois
amantes se fundem num único e bipartido ser. Não haveria, portanto,
razões para meu rebaixamento. Está-me a seguir, meu irmão?
Mas
agora, no momento que lhe escrevo, nem mais me apetece explicação.
Quero desraciocinar. Em cada dia não espero senão a noite, as
brandas tempestades em que eu sou Joãotónio e Joanantónia,
masculina e feminino, nos braços viris de minha esposa. Por
enquanto, mano, ainda sou Joãotónio. Me vou despedindo,
vagarinhoso, do meu verdadeiro nome.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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