Uma
senhora carregando um pequinês, outra, mais velha, carregando a si
mesma com a mesma pose. Sentaram à mesa ao lado da nossa. Não, não,
o pequinês não quis fazer amor com o meu calcanhar, esta é outra
história. Aristocracia francesa ao ponto da caricatura,
possivelmente mãe e filha. Deixaram o peixe pedido no prato e a mais
velha disse ao garçom que o ponto de cozimento estava errado. La
cuisson, um daqueles parâmetros sagrados pelos quais os
franceses estabelecem a justeza de tudo, não era a que ela tinha
determinado. E o garçom cometeu um erro. O garçom não disse
desolê.
O
ponto da cuisson não serve apenas para a carne, que pode vir
sangrando, rosada, ao ponto ou (há gosto para tudo) bem passada, mas
também para o peixe, e neste caso sua definição requer mais tempo
e um vocabulário ainda mais minucioso. E o maître obviamente
não transmitira as instruções corretas ao chef, ou
transmitira e o chef não ligara. Mas quando veio a madame,
mulher do chef e dono do restaurante, saber o que tinha
havido, nossa vizinha disse que perdoava tudo. Perdoava o peixe
errado, pois afinal o chef era obrigado a pensar no gosto dos
turistas (nós) e perdoava, estava subentendido, a invasão da França
pelos bárbaros e o declínio generalizado de critérios num mundo em
crise. Só não perdoava o garçom não ter dito, nem uma vez,
desolê.
Os
franceses se declaram desolê por qualquer coisa. Você os
deixa desolados, desconsolados, arrasados com o menor pedido que não
podem atender, ou com a menor demonstração de decepção ou
desconforto. É uma declaração tão forte de contrição e empatia
que, mesmo automática e distraída, deixa você sem ação. O que
mais você pode pedir de quem está pensando no suicídio por sua
causa? Desolê absolve tudo. Desolê encerra tudo. E o
garçom negou mesmo um desolê protocolar pelo mau cozimento
do peixe.
As
duas recolheram as suas coisas e saíram do restaurante com mercis
que eram agulhadas. O mais indignado era o pequinês.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
Nenhum comentário:
Postar um comentário