1
— Telefone
para o senhor.
Olhei
para o mordomo, entre atônito e incrédulo. Telefonema para mim?
Aqui? Como?
O
professor Propp, meu analista, me garantiu, ninguém me reconheceria
nesta festa.
Segundo
ele, nas histórias de magia e de mistério, o narrador está sempre
ausente, nunca participando da festa, quero dizer, das ações.
Tentei
explicar isso ao lacaio, que continuou impávido de pé, o telefone
numa bandeja como uma lagosta, esperando, esperando, pergunta.
Levei
a mão ao aparelho, apavorado com a ideia de que tinha uma voz ali
dentro, vinda de algum lugar, e tudo podia acontecer.
O
mordomo não mostrou sinais de vida quando minha mão parou em pleno
ar e comecei a lhe explicar os meandros do pensamento do professor
Propp, para sua ignorância plebeia, eram menos interessantes que um
peido, podia ver isso em sua cara que consistia toda em uma
superfície sem profundidade, um lago plácido com a fundura de uma
folha de papel.
O
mordomo insistiu. Era comigo mesmo.
Pensei,
já quase suando. E se for “você sabe com quem está falando?”
E
que tal seu coração diante de um “fuja enquanto é tempo, tudo
foi descoberto”? Insuportável imaginar um “desculpe, foi
engano”.
De
qualquer forma, é contra meus princípios demonstrar fraqueza diante
da criadagem. Levei a mão ao aparelho, com a determinação de um
coronel de hussardos de Napoleão levando a mão ao sabre, bradando
“carga!”.
O
telefone, agora, eu colava aquele búzio na orelha, e ouvi do outro
lado o marulhar da vida, aquele silêncio febril de um formigueiro na
primavera. As cacofonias da festa se multiplicavam em minha volta,
enquanto me chegavam partículas de palavras, destroços de frases,
poeiras de som: (...) tesão, o maior tesão (...), ... me comer
(...), meter de uma vez só (...), tudo aqui dentro (...) tudo, de
uma vez (...).
Tirei
o telefone do ouvido, as orelhas ardendo com aquela queimadura. E
olhei para o mordomo. Tentei olhar, isto é. Nada na minha frente,
tinha se dissolvido naqueles rios de cabeças gargalhantes, altos
penteados, dentaduras escancaradas.
Eu
estava sozinho com um telefone no colo e, dentro dele, uma voz que
dizia o que só se diz, bem, vocês sabem.
Na
mão esquerda, eu ainda segurava um cigarro por acender.
Cheguei
devagar o telefone no ouvido e do outro lado ouvi... merda!, tem uma
coisa sobre a qual eu não quero falar.
2
Levantei
os olhos devagar para o carnaval de luzes em minha volta. Tudo
parecia idêntico. As mesmas pessoas. As mesmas gargalhadas.
Os gestos todos certos. A certeza.
Só
que tinha uma coisa errada. TUDO tinha mudado.
Por
segundos girei numa vertigem, sem saber o quê, em quê, por quê.
Ah,
por quês?, como atingir a sabedoria sem vocês, porquês, por quês,
porquês, diabólica máquina das causas e efeitos. O que tinha
mudado? Nenhum POR QUÊ?, por favor. TUDO.
3
De
repente, tudo ficou pálido como se tivesse medo. De repente, tudo
ficou corado, como se tivesse vergonha. O ar ficou corado. E tudo
empalideceu, como, como é que foi mesmo que eu não dei pela
ausência de Norma, aquela coisa gostosa entre as mulheres, sorvete
reinando sobre meu reino de prazer com um morango por coroa?
4
E
como TUDO tinha mudado me dei ao direito de também. Meu rosto, de
senhorial mudou para o desespero, de raivoso passou para o desânimo,
em meu rosto, meu rosto mudou, rapidamente, flashes de slide
projetados na cara de uma estátua por uma máquina desgovernada.
Me
levantei, à procura de alguém conhecido, diante de mim, o
desconhecido oeste selvagem, infestado de ursos e índios
antropófagos, nenhum amigo, nenhuma amiga, pratos célebres, unhas
feitas por joalheiros inacessíveis, vozes estrangeiras, sotaques
dissonantes.
Levantar
me fez bem. Circulei com segurança, sentindo meu rosto voltar à
forma primitiva, a cara que eu fazia antes, bem antes de começar
este romance, meu romance com Norma.
Respondi
ao ligeiro cumprimento de um senhor parecido com meu tio,
provavelmente me confundindo com algum sobrinho, me aproximei
soberano.
— Os
tempos estão mudando, comentei, certo de que o tempo é um assunto
universal bastante para interessar a todas as pessoas e de que a
mudança é uma experiência geral.
Ela
não me respondeu. Seus olhos (opala? ágata?) me atravessavam, como
se eu fosse uma vidraça entre ela e o Mediterrâneo.
Vamos
mudar. Mas vai mudar assim na puta que o pariu.
Me
afastei com raiva em direção a um sofá que jazia num canto, um
hipopótamo verde-musgo e dourado, debaixo do grande relógio, que eu
já sabia tinha pertencido ao tetravô do dono da casa e da festa.
Do
dono da casa e da festa, já tinha ouvido falar muito. Sabia que era
senhor de muitos recursos, e tinha se dedicado à caridade, desde a
morte da mãe, abastecendo com festas o tédio de gente como eu.
Olhei
para o relógio. Meia-noite e quinze, os ponteiros escreviam um L.
Sentei e olhei em frente.
Só
existia uma verdade absoluta. TUDO tinha mudado.
5
Para
melhor, para pior, pouco importa, essas palavras, bem e mal, já não
faziam diferença, não tinham mais nada a fazer naquele jogo,
entende? Eu vivia uma circunstância absoluta, podia sentir os
sintomas. Bem que meu analista tinha me prevenido. Mas eu lá tenho
cara de quem vai atrás do papo de um judeuzinho da Europa Central,
óculos na ponta do nariz, a cabeça cheia de teorias e esquemas,
caverna atravessada de teias de aranha, por onde voam vocês,
morcegos milenares? A gente arrasta o rabo do dia a dia, os dias na
esperança de um só dia, um momento máximo, o campeonato nacional,
a decisão, a final. Esta era a final. Daqui para diante, só
as florestas, os desertos, os pantanais e os céus da sabedoria.
Mas
foi triste que varei a sala, me debatendo entre as ondas de com
licença e desculpe, perdão e tenha a bondade, até a mesa do
ponche. Jamais vou poder dizer se a tristeza, que me encheu como o
vinho enche um copo, vinha da ausência de Norma ou de constatar
amargurado, e me resignar com a evidência gritante de que aquilo
fosse o que era, a queda do império, a passagem do cometa Halley, o
primeiro lugar na lista dos sucessos, uma bobagem dessas qualquer.
Já
era ciúme o que eu sentia com a desaparição de Norma? E o que
fazer com a lição do professor Propp, isso não existe?
Medo. Medo, sim. Quando senti medo, quase pude tocar com as mãos
suas imensas distâncias, abismos intransponíveis, silêncios
insuportáveis, tudo aquilo que a gente sente diante do tigre, tudo
aquilo que sobe e desce na espinha quando você pergunta:
— É
grave, doutor?
O
doutor Wiesengrund achava que quem sabe. E acreditava sinceramente
que isso tudo tinha cura. Era da velha escola. Um pouco de ar puro,
farta alimentação, muita abstinência de lipídios, e uma buceta de
vez em quando. Para as senhoras, caralhos, evidentemente. Um
pinheirinho de Natal, coruscante de esmeraldas e rubis, ao seu lado,
a senhora Wiesengrund fazia que sim com a cabeça, a cada palavra que
o eminente pentelho regurgitava.
A
cada minuto que passava, mais aumentava meu medo, e eu ficava cada
vez mais feliz de poder gritar “terra à vista”, diante daquele
rato que me roía as entranhas, polo ártico na boca do estômago,
meu velho e querido amigo, enfim, um amigo, meu verdadeiro amigo, o
pavor.
A
gente se conhecia desde a infância, o medo cresceu comigo. Quando eu
era garoto, meu medo principal era que a casa do meu pai desabasse.
Mas era apenas o centro do terror. Deste centro se irradiavam
miríades de medos, aquelas coisas que, com uma picada de frio na
minha barriga, me enchiam a vida de vibração e significado, os
mínimos medos que cintilavam em volta, e se estendiam até os
inumeráveis horizontes do desconhecido. De repente, fiquei
apavorado. A partir desse momento, não senti mais NADA.
Estava na companhia de algo maior, muito maior, infinitamente maior
que qualquer medo. TUDO tinha mudado.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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