sexta-feira, 26 de abril de 2019

Agora é que são elas - Capítulo 2

1

Telefone para o senhor.
Olhei para o mordomo, entre atônito e incrédulo. Telefonema para mim? Aqui? Como?
O professor Propp, meu analista, me garantiu, ninguém me reconheceria nesta festa.
Segundo ele, nas histórias de magia e de mistério, o narrador está sempre ausente, nunca participando da festa, quero dizer, das ações.
Tentei explicar isso ao lacaio, que continuou impávido de pé, o telefone numa bandeja como uma lagosta, esperando, esperando, pergunta.
Levei a mão ao aparelho, apavorado com a ideia de que tinha uma voz ali dentro, vinda de algum lugar, e tudo podia acontecer.
O mordomo não mostrou sinais de vida quando minha mão parou em pleno ar e comecei a lhe explicar os meandros do pensamento do professor Propp, para sua ignorância plebeia, eram menos interessantes que um peido, podia ver isso em sua cara que consistia toda em uma superfície sem profundidade, um lago plácido com a fundura de uma folha de papel.
O mordomo insistiu. Era comigo mesmo.
Pensei, já quase suando. E se for “você sabe com quem está falando?”
E que tal seu coração diante de um “fuja enquanto é tempo, tudo foi descoberto”? Insuportável imaginar um “desculpe, foi engano”.
De qualquer forma, é contra meus princípios demonstrar fraqueza diante da criadagem. Levei a mão ao aparelho, com a determinação de um coronel de hussardos de Napoleão levando a mão ao sabre, bradando “carga!”.
O telefone, agora, eu colava aquele búzio na orelha, e ouvi do outro lado o marulhar da vida, aquele silêncio febril de um formigueiro na primavera. As cacofonias da festa se multiplicavam em minha volta, enquanto me chegavam partículas de palavras, destroços de frases, poeiras de som: (...) tesão, o maior tesão (...), ... me comer (...), meter de uma vez só (...), tudo aqui dentro (...) tudo, de uma vez (...).
Tirei o telefone do ouvido, as orelhas ardendo com aquela queimadura. E olhei para o mordomo. Tentei olhar, isto é. Nada na minha frente, tinha se dissolvido naqueles rios de cabeças gargalhantes, altos penteados, dentaduras escancaradas.
Eu estava sozinho com um telefone no colo e, dentro dele, uma voz que dizia o que só se diz, bem, vocês sabem.
Na mão esquerda, eu ainda segurava um cigarro por acender.
Cheguei devagar o telefone no ouvido e do outro lado ouvi... merda!, tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar.

2

Levantei os olhos devagar para o carnaval de luzes em minha volta. Tudo parecia idêntico. As mesmas pessoas. As mesmas gargalhadas. Os gestos todos certos. A certeza.
Só que tinha uma coisa errada. TUDO tinha mudado.
Por segundos girei numa vertigem, sem saber o quê, em quê, por quê.
Ah, por quês?, como atingir a sabedoria sem vocês, porquês, por quês, porquês, diabólica máquina das causas e efeitos. O que tinha mudado? Nenhum POR QUÊ?, por favor. TUDO.

3

De repente, tudo ficou pálido como se tivesse medo. De repente, tudo ficou corado, como se tivesse vergonha. O ar ficou corado. E tudo empalideceu, como, como é que foi mesmo que eu não dei pela ausência de Norma, aquela coisa gostosa entre as mulheres, sorvete reinando sobre meu reino de prazer com um morango por coroa?

4

E como TUDO tinha mudado me dei ao direito de também. Meu rosto, de senhorial mudou para o desespero, de raivoso passou para o desânimo, em meu rosto, meu rosto mudou, rapidamente, flashes de slide projetados na cara de uma estátua por uma máquina desgovernada.
Me levantei, à procura de alguém conhecido, diante de mim, o desconhecido oeste selvagem, infestado de ursos e índios antropófagos, nenhum amigo, nenhuma amiga, pratos célebres, unhas feitas por joalheiros inacessíveis, vozes estrangeiras, sotaques dissonantes.
Levantar me fez bem. Circulei com segurança, sentindo meu rosto voltar à forma primitiva, a cara que eu fazia antes, bem antes de começar este romance, meu romance com Norma.
Respondi ao ligeiro cumprimento de um senhor parecido com meu tio, provavelmente me confundindo com algum sobrinho, me aproximei soberano.
Os tempos estão mudando, comentei, certo de que o tempo é um assunto universal bastante para interessar a todas as pessoas e de que a mudança é uma experiência geral.
Ela não me respondeu. Seus olhos (opala? ágata?) me atravessavam, como se eu fosse uma vidraça entre ela e o Mediterrâneo.
Vamos mudar. Mas vai mudar assim na puta que o pariu.
Me afastei com raiva em direção a um sofá que jazia num canto, um hipopótamo verde-musgo e dourado, debaixo do grande relógio, que eu já sabia tinha pertencido ao tetravô do dono da casa e da festa.
Do dono da casa e da festa, já tinha ouvido falar muito. Sabia que era senhor de muitos recursos, e tinha se dedicado à caridade, desde a morte da mãe, abastecendo com festas o tédio de gente como eu.
Olhei para o relógio. Meia-noite e quinze, os ponteiros escreviam um L. Sentei e olhei em frente.
Só existia uma verdade absoluta. TUDO tinha mudado.

5

Para melhor, para pior, pouco importa, essas palavras, bem e mal, já não faziam diferença, não tinham mais nada a fazer naquele jogo, entende? Eu vivia uma circunstância absoluta, podia sentir os sintomas. Bem que meu analista tinha me prevenido. Mas eu lá tenho cara de quem vai atrás do papo de um judeuzinho da Europa Central, óculos na ponta do nariz, a cabeça cheia de teorias e esquemas, caverna atravessada de teias de aranha, por onde voam vocês, morcegos milenares? A gente arrasta o rabo do dia a dia, os dias na esperança de um só dia, um momento máximo, o campeonato nacional, a decisão, a final. Esta era a final. Daqui para diante, só as florestas, os desertos, os pantanais e os céus da sabedoria.
Mas foi triste que varei a sala, me debatendo entre as ondas de com licença e desculpe, perdão e tenha a bondade, até a mesa do ponche. Jamais vou poder dizer se a tristeza, que me encheu como o vinho enche um copo, vinha da ausência de Norma ou de constatar amargurado, e me resignar com a evidência gritante de que aquilo fosse o que era, a queda do império, a passagem do cometa Halley, o primeiro lugar na lista dos sucessos, uma bobagem dessas qualquer.
Já era ciúme o que eu sentia com a desaparição de Norma? E o que fazer com a lição do professor Propp, isso não existe? Medo. Medo, sim. Quando senti medo, quase pude tocar com as mãos suas imensas distâncias, abismos intransponíveis, silêncios insuportáveis, tudo aquilo que a gente sente diante do tigre, tudo aquilo que sobe e desce na espinha quando você pergunta:
É grave, doutor?
O doutor Wiesengrund achava que quem sabe. E acreditava sinceramente que isso tudo tinha cura. Era da velha escola. Um pouco de ar puro, farta alimentação, muita abstinência de lipídios, e uma buceta de vez em quando. Para as senhoras, caralhos, evidentemente. Um pinheirinho de Natal, coruscante de esmeraldas e rubis, ao seu lado, a senhora Wiesengrund fazia que sim com a cabeça, a cada palavra que o eminente pentelho regurgitava.
A cada minuto que passava, mais aumentava meu medo, e eu ficava cada vez mais feliz de poder gritar “terra à vista”, diante daquele rato que me roía as entranhas, polo ártico na boca do estômago, meu velho e querido amigo, enfim, um amigo, meu verdadeiro amigo, o pavor.
A gente se conhecia desde a infância, o medo cresceu comigo. Quando eu era garoto, meu medo principal era que a casa do meu pai desabasse. Mas era apenas o centro do terror. Deste centro se irradiavam miríades de medos, aquelas coisas que, com uma picada de frio na minha barriga, me enchiam a vida de vibração e significado, os mínimos medos que cintilavam em volta, e se estendiam até os inumeráveis horizontes do desconhecido. De repente, fiquei apavorado. A partir desse momento, não senti mais NADA. Estava na companhia de algo maior, muito maior, infinitamente maior que qualquer medo. TUDO tinha mudado.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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