domingo, 31 de março de 2019

O poeta não pode temer o povo

Chegamos ao estranho templo da Serpente, nos subúrbios da cidade de Penang, no que antes se chamava Indochina. Este templo foi muito descrito por viajantes e jornalistas. Com tantas guerras, tantas destruições e tanto tempo e chuva que caíram sobre as ruas de Penang, não sei se ainda existirá. Sob o teto de telhas, um edifício baixo e encardido, carcomido pelas chuvas tropicais, entre a espessura das grandes folhas dos plátanos. Cheiro de umidade. Aroma de frangipana. Quando entramos no templo não vemos nada na penumbra. Um cheiro forte de incenso e ali adiante algo se move. É uma serpente que se espreguiça. Pouco a pouco notamos que há algumas outras. Logo observamos que talvez são dezenas. Mais tarde compreendemos que são centenas ou milhares de serpentes. Há pequenas enroscadas nos candelabros, há escuras, metálicas e delgadas, todas parecem adormecidas e saciadas. De fato, por toda parte se veem finas travessas de porcelana, algumas transbordantes de leite e outras cheias de ovos. As serpentes não olham para nós. Passamos roçando-as pelos estreitos labirintos do templo, estão sobre nossas cabeças, suspensas da arquitetura dourada, dormem sobre os muros, enroscam-se sobre os altares. Eis aí a temível víbora de Russell, engolindo um ovo junto de uma dezena de mortíferas cobras-corais, cujos anéis de cor escarlate denunciam seu veneno instantâneo. Vi a ”fer de lance”, vários e grandes pitons, a “coluber de rusi” e a “coluber noya”. Serpentes verdes, cinzentas, azuis e negras enchiam a sala. Tudo em silêncio. De vez em quando um bonzo vestido de açafrão atravessa a sombra. A cor brilhante de sua túnica faz com que ele pareça mais uma serpente, movediça e preguiçosa, em busca de um ovo ou de um bebedouro de leite.
Estas cobras foram trazidas até aqui? Como se acostumaram? Nossas perguntas são respondidas com um sorriso; dizem-nos que vieram sozinhas e que irão sozinhas quando tiverem vontade. O certo é que as portas estão abertas e não há grades ou vidros nem nada que as obrigue a ficar no templo.
O ônibus saía de Penang e devia atravessar a selva e as aldeias da Indochina para chegar a Saigon. Ninguém entendia meu idioma nem eu entendia o de ninguém. Parávamos nas curvas da mata virgem, ao longo do caminho interminável, e desciam os viajantes, camponeses de vestimentas estranhas, taciturna dignidade e olhos oblíquos. Já restavam só uns três ou quatro no interior do imperturbável calhambeque que rangia e ameaçava se desintegrar na noite quente.
De repente me senti em pânico. Onde estava? Aonde ia? Por que passava essa noite longuíssima entre desconhecidos? Atravessávamos o Laos e o Camboja. Observei os rostos impenetráveis de meus últimos companheiros de viagem. Iam com os olhos abertos. Suas feições me pareciam patibulares. Eu estava sem dúvida entre típicos bandidos de um conto oriental.
Trocavam olhares de compreensão e me olhavam de soslaio. Nesse momento exato o ônibus se deteve silenciosamente em plena selva. Escolhi meu lugar para morrer. Não permitiria que me levassem para ser sacrificado debaixo daquelas árvores ignotas cuja sombra escura ocultava o céu. Morreria ali, num banco do ônibus desconjuntado, entre cestas de vegetais e gaiolas de galinhas, única coisa familiar naquele minuto terrível. Olhei ao redor, decidido a enfrentar a sanha de meus verdugos, e percebi que também eles tinham desaparecido.
Esperei longo tempo sozinho, com o coração oprimido pela escuridão intensa da noite estrangeira. Ia morrer sem ninguém saber, tão distante de meu pequeno país amado, tão separado de todos meus amores e de meus livros!

Logo apareceu uma luz e depois outra. O caminho encheu-se de luzes. Soou um tambor; irromperam as notas estridentes da música cambojana. Flautas, tamborins e archotes encheram de claridade e sons o caminho. Subiu um homem que me disse em inglês:
- O ônibus sofreu uma avaria. Como a espera será longa, talvez até o amanhecer, e não tem aqui onde dormir, os passageiros foram buscar uma troupe de músicos e dançarmos para que o senhor se entretenha.
Durante horas, sob aquelas árvores que já não me ameaçavam, presenciei as maravilhosas danças rituais de uma nobre e antiga cultura e escutei, até o sol raiar, a música deliciosa que invadia o caminho.
O poeta não pode temer o povo. Pareceu-me que a vida fazia uma advertência e me ensinava para sempre uma lição: a lição da honra oculta, da fraternidade que não conhecemos e da beleza que floresce na escuridão.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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