domingo, 24 de março de 2019

Não sei mesmo onde vamos parar

Fotograma do filme As vinhas da ira

Quarenta quilômetros de Castle a Paden, e o sol passara o zênite, começando a descer. A tampa do radiador começou a oscilar e o vapor escapou-se-lhe entre as frestas. Próximo a Paden havia uma construção à margem da estrada e duas bombas de gasolina defronte dela; e ao lado, diante de uma cerca, uma bica de água e uma mangueira. Al dirigiu o Hudson de maneira que o radiador do caminhão ficasse bem junto da bica. Assim que parou, um homem corpulento, de rosto e braços vermelhos, ergueu-se de uma cadeira colocada atrás das bombas de gasolina e veio ao seu encontro. Vestia calças de lona marrom, suspensórios e uma camiseta de malha; e tinha sobre os olhos uma viseira de cor prata. O suor gotejava de seu nariz e de sob os olhos, formando pequenos fios nos vincos do pescoço. Aproximou-se lentamente do caminhão, a cara fechada, truculenta.
Querem comprar alguma coisa? Gasolina, ou quê? — perguntou.
Al já tinha saltado e estava desatarraxando a tampa do radiador que estava envolta em vapor, utilizando-se da ponta dos dedos para que o vapor quente não lhe queimasse a mão quando brotasse em jato forte.
Preciso de gasolina, seu.
Tem dinheiro?
É claro. Pensa que estamos mendigando?
A expressão truculenta abandonou as faces do homem.
Bom, então tá certo. Pode se servir da água. — E tratou de explicar: — A estrada tá cheia de gente e todo mundo quer água e suja a privada e, que diabos, rouba o que pode e não compra coisa nenhuma. Não têm dinheiro pra comprar nada. Mendigam um galão de gasolina e vão-se adiante.
Tom pulou colérico do caminhão e postou-se em frente ao homem da bomba de gasolina.
Nós pagamos, tá compreendendo? — disse exaltado. — Você não tem o direito de nos interrogar, nem de falar com a gente desse jeito, ouviu? Meta-se com a sua vida!
Não tô me metendo com ninguém — escusou-se o homem, depressa. Sua camiseta já estava ensopada de suor. — Podem tirar água à vontade. E servir-se do banheiro, se quiserem.
Winfield já tinha achado o bico da mangueira e agora encostava-o à boca, e deixava que a pressão da água lhe lavasse a cabeça e o rosto. Depois deixou a água escorrer.
Tá quente — disse.
Não sei onde vamos parar — disse o homem da bomba de gasolina, com um jeito de quem não tinha a intenção de atingir os Joad. — Cinquenta a sessenta carros cheios de gente passam por aqui todos os dias, para o Oeste, carregando filhos e troços à beça. Aonde é que eles vão desse jeito? Que é que eles vão fazer?
Vão fazer o mesmo que nós — disse Tom. — Procurar um lugar pra viver. É só isso, nada mais.
Bem, eu não sei onde isso vai parar assim. Não sei, mesmo. Olhe eu, por exemplo. Também estou aqui tentando cuidar da minha vida. O senhor pensa que algum dos carros grandes e novos que passam por esta estrada para na minha bomba? Para coisa nenhuma! Vai direitinho à cidade, onde tem aqueles postos pintados de amarelo da companhia de gasolina. Eles não param em lugar que nem esse. Aqueles que param, é pra pedir coisas, nada de comprar.
Al tinha afrouxado a tampa do radiador, que, impelida por um forte jato de vapor, voou bem alto. Um som cavo, murmurante, subiu pelo tubo. No alto da carroceria, o cachorro, sofredor, foi se esgueirando para a traseira do caminhão, gania timidamente e olhava para baixo, em direção à água. Tio John subiu e carregou-o para baixo, segurando-o firmemente pela pele do pescoço. Por um instante, o animal ficou estacado, pernas retesadas, depois correu à poça d’água que se formara junto ao bico da mangueira. Pela estrada deslizavam os carros, cintilando ao calor, e o vento quente que levantavam na corrida atingia o posto de gasolina. Al enchia o radiador de água.
Não é que eu me queira aproveitar da gente rica — continuou o homem do posto. — Mas preciso manter o meu negócio. E aqueles que param aqui só vivem esmolando gasolina ou então querem fazer trocas. Posso mostrar, estão aí naquele quarto dos fundos, aquela porção de troços que tenho recebido em paga de gasolina e óleo: camas, berços, panelas e frigideiras. Uma família trocou até a boneca de uma filha por um galão de gasolina. Que é que eu vou fazer com esses troços todos? Abrir uma loja de quinquilharias? Um sujeito queria me dar até os sapatos em troca de um galão de gasolina. E se eu não fosse um camarada direito, até as... — Ele olhou para a mãe e não continuou a frase.
Jim Casy jogara água sobre a cabeça e as gotas lhe caíam ainda pela testa ampla; seu pescoço musculoso e sua camisa estavam molhados. Dirigiu-se para o lado de Tom:
É assim mesmo, eles não têm culpa — disse. — Você gostaria de vender até a cama em que dorme por um pouco de gasolina?
Eu sei que a culpa não é deles. Todos com quem conversei têm razões mais do que boas pra se meterem na estrada. Mas onde é que o país vai parar desse jeito? É o que eu queria saber. Aonde é que tudo isso nos vai levar? Um homem já não pode ganhar a vida decentemente. Nem as terras se pode cultivar mais. Eu lhe pergunto: como é que isto vai acabar? Não faço a menor ideia. E ninguém, dos que interroguei a respeito, soube me dizer nada. Um sujeito aí quis vender até os sapatos pra poder ir mais uns cem quilômetros adiante. Francamente, não sei, não compreendo nada.
Tirou a viseira prateada da fronte, limpando a testa com ela.
E Tom também tirou o boné e enxugou o suor com ele. Foi até a mangueira, molhou o boné, torceu-o e colocou-o novamente na cabeça. Mãe tirou um copo de folha de flandres de entre a carga do caminhão, encheu-o de água e levou-o ao avô e à avó, que ainda estavam sentados no veículo. Encostou-se às barras laterais do caminhão, ofereceu o copo ao avô, que molhou os lábios e sacudiu a cabeça dizendo que não queria mais. Seus olhos alquebrados miraram a mãe, doloridos e desvairados, até que um instante depois o brilho da inteligência tornou a sumir-se deles.
Al pôs o motor em movimento e foi em marcha à ré até a bomba de gasolina.
Bom, enche o tanque — disse. — Deve caber uns sete, mas quero só seis pra que não entorne gasolina.
O homem da bomba dirigiu a mangueira para o orifício do tanque.
Francamente — foi falando — não sei como é que este país vai acabar. Mesmo com o seguro-desemprego e tudo.
Casy disse:
Eu já percorri este país. E todo mundo me fez esta pergunta. Onde vamos parar? Acho que não vamos parar em lugar nenhum. Estamos sempre a caminho. Sempre indo. Por que é que ninguém pensa sobre isso? É um movimento que não acaba nunca. O pessoal anda, anda sempre. Nós sabemos por que, e sabemos como. Caminhamos porque somos obrigados a caminhar. É o único motivo por que todos caminham. Porque querem alguma coisa melhor do que têm. E caminhar é a única oportunidade de se obter essa melhoria. Se querem e precisam, têm que ir buscar. A fome tira o lobo da toca. Eu já percorri o país todo e ouvi muita gente falar como você fala.
O homem do posto encheu o tanque. O ponteiro do medidor marcou a quantidade do combustível pedido.
Sim, mas aonde nos vai levar tudo isso? É o que eu quero saber.
Tom interrompeu-o, irritado:
Você é que nunca vai saber disso. O reverendo já te explicou, e você continua a repetir suas perguntas bestas. Conheço muita gente como você. Não querem saber de nada, mas vivem repetindo a mesma ladainha: onde vamos parar? A você isso não interessa. O pessoal sai de sua terra, vai pra cá e pra lá. Talvez você também morra de uma hora para outra, mas nem quer pensar nas coisas. Conheço muita gente assim. Não querem saber de nada. Só vivem cantando a mesma cantiga: onde vamo parar?
Ele olhou a bomba de gasolina, que era velha e enferrujada, e o barraco construído atrás, de madeira velha, em que se viam ainda os buracos dos pregos usados nela pela primeira vez salientando-se na pintura amarela já desbotada, que pretendia imitar a dos grandes postos da cidade. Mas a pintura não conseguia ocultar os buracos dos pregos antigos, nem as velhas rachaduras na madeira, e a pintura não podia ser renovada. A imitação não passava de uma grosseira tentativa e o dono sabia disso muito bem. No interior do barraco, de porta aberta, Tom viu as latas de óleo, havia só duas, e sobre um balcão havia bombons velhos e barras de alcaçuz que o tempo tornara escuras e cigarros. Viu a cadeira quebrada e a tela de proteção contra moscas, com um buraco enferrujado ao centro. E o quintal desarranjado, que devia ser coberto de cascalho, e, atrás, um campo de cereais, secando e morrendo sob os raios do sol inclemente. Ao lado da casa, o pequeno sortimento de pneus usados e de pneus recauchutados. E, pela primeira vez, notou as calças ordinárias e mal lavadas do dono da barraca, o gordo homem da bomba de gasolina, e sua camiseta ordinária e a viseira prateada sobre os olhos.
Eu não queria ofender o senhor — falou. — É o calor, sabe? O senhor também não tem nada. De qualquer maneira, daqui a pouco o senhor estará indo embora. Para o senhor, não são os tratores, para o senhor são os grandes e novos postos de serviço das cidades. O senhor vai acabar indo embora também.
O homem do posto foi diminuindo a ginástica com que acionava a alavanca da bomba e parou de vez, enquanto Tom falava. Encarou-o, preocupado:
Afinal de contas, como é que você sabe que nós também estamos nos preparando para ir para o Oeste?
Casy foi quem lhe deu a resposta:
É porque todos estão indo para lá. Veja eu, por exemplo; antes lutava com todas as minhas forças contra o demônio, porque pensava que o demônio era o inimigo. Mas agora é outra coisa muito pior que o demônio o que está dominando o país, uma coisa que não acabará enquanto a gente não acabar com ela. Você já viu como se agarra um monstro de Gila? Aquele lagarto grande e venenoso do Novo México, sabe? Ele cerra os dentes com uma força extraordinária e pode-se cortá-lo em dois, que a cabeça ainda fica agarrada. Corte-lhe o pescoço, e a cabeça ainda fica presa. A gente tem que enfiar a ponta de uma chave de fenda na cabeça dele para que as presas se abram e soltem a carne, mas mesmo assim o veneno vai gotejando no buraco aberto pelos dentes dele. — Ele estacou e olhou Tom de lado.
O gordo fixou desanimado os olhos no chão. Sua mão recomeçou a movimentar a alavanca da bomba.
Não sei mesmo onde vamos parar — disse com brandura.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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