A
ideia ocorreu-me em março de 1967, quando ganhei pela... ésima vez,
para grande prazer meu, um novo Pequeno dicionário brasileiro da
língua portuguesa, de meu velho amigo Aurélio Buarque de
Holanda, que nada tem a ver com Sérgio e Chico, mas é, também,
homem de muita cachola. Lembro-me de que era noite, e fiquei
folheando-o à toa, e verificando uma vez mais a minha imensa
ignorância do nosso léxico. De cada dez palavras, não sabia o
significado de três ou quatro. É verdade que eram, o mais das
vezes, palavras eruditas, de conteúdo científico e - bolas! - eu
não sou cientista nem nada. Mas para um escritor, uma tal
constatação é, de qualquer forma, humilhante. Passei a ler com
mais frequência o dicionário como recomendava Gide - o que, aliás,
constitui para mim uma ocupação melhor que a leitura desses
escritores de best sellers que andam em voga.
Muitos
amigos me têm pedido que escreva as minhas memórias, Fernando
Sabino em particular. Fico pensando... Para quê? Parece-me um ato de
vaidade, mais que de despudor. Mas, pondera ele - o Otto Lara Resende
já me disse o mesmo - eu percorri um caminho de tal modo vário em
experiências, aqui e no estrangeiro, que sonegá-las aos que
acreditam no que escrevo, à mocidade em particular, é, de certo
modo, uma forma de vaidade maior ainda. Considerando-se, ademais, que
minha vida sempre foi, por assim dizer, vivida abertamente...
Não
sei. Tenho horror à ideia de tornar-me literário, de começar a
redigir no ato de escrever. O que me dificulta, hoje em dia, a
leitura dos escritores em geral, com pouquíssimas exceções, é
justamente esse detestável defeito. Mal sinto, em lugar de estilo, o
menor maneirismo, a menor fita, largo o livro de mão.
Acho-os, na maioria, uns chatos, só contam o que todo mundo
já sabe ou logo adivinha. A vida é infinitamente mais rica que suas
palavras - e estou certo de que mesmo os mais medíocres são
portadores de experiências que nas mãos de um bom romancista ou um
bom biógrafo dariam matéria de interesse universal. Pois tudo tem
interesse, mesmo o coito de duas moscas, desde que provoque no ser
que o observa um reflexo vital.
Vale
dizer que pouca gente vive: esta é a grande verdade; vive no
sentido de queimar-se sem reservas, sem preconceitos, sem atitudes,
sem julgamentos canonizados por uma moral convencional imposta. Mas,
por outro lado, eu não gostaria de escandalizar. Escandalizar pode
ser também uma forma infame de vaidade, um processo autocomplacente
de criar uma antimoral como justificação de taras ou fraquezas
pessoais. Não: eu sou um homem que, até certo ponto, venceu as
barreiras do medo de viver, e viver é, hoje em dia, para mim, um ato
simples, perturbado apenas pelas neuroses consequentes do simples ato
de viver. A vida, trata-se de cumpri-la bem, sem outro temor que ter
de apertar-lhe as rédeas. Ai de mim, que ilusão! - dizer isto na
quadra dos cinquenta, quando os frutos do amor crescem cada vez menos
ao alcance das mãos, do meu desejo...
Mas
o curioso em tudo isso é que, aquela noite de março de 1967, a
leitura à toa do Pequeno dicionário fez-me voltar a 15 anos
atrás, num hotel em Genebra, quando - lembro-me tão bem agora -
veio-me pela primeira vez a vontade de escrever minhas memórias, e
eu chamei um mensageiro e dentro em breve punha-me a rabiscar num
grosso caderno suíço. O resultado de um dia de trabalho pareceu-me,
na manhã seguinte, tão... não digo literário, mas
auto-suficiente, que larguei aquela choldra com um profundo
aborrecimento de mim mesmo. Eu nada fizera senão ir,
conscientemente, tentar justificar-me, apresentar-me sob uma luz
falso-modesta, ficar lambendo as próprias feridas.
Agora,
não. Agora sinto que vou poder escrevê-las, usando as letras do
alfabeto e as palavras da língua sob seus capítulos, como ímãs
mnemônicos capazes de me mergulhar compulsivamente num abismo de
lembranças: palavras concretas desagregando-se em memórias, um
infinito de saudades, um sumidouro de associações caóticas, mas de
onde possam vir à tona, tal um agente lisérgico, os fragmentos
desse grande puzzle a reconstituir, que é a vida de um homem,
de qualquer homem, de todos os homens. E fazê-lo dia a dia, numa
hipnose consciente que possa resultar, quem sabe, numa autoanálise,
tanto quanto possível próxima da verdade - que desta, realmente,
não se sabe nunca.
Sim,
a ideia me apaixona. Por que não tentar? Por que não pousar os
olhos numa palavra e, através de conjeturas, sentir refluir o que
ficou do tempo? Que mundo de livros, sobrasse-me vida, não poderia
eu escrever com a palavra amor, a palavra amigo, a
palavra mulher... Não criou a palavra ressentimento
condições para que eu possa mergulhar na palavra sonho, e
sonhar, e sonhar minha existência... - palavra por palavra?
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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