segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Capítulo 13: Escapando dos destroços do barco a vapor – O vigia – Afundando – Um sono profundo

Parei um pouco e quase desmaiei. Encurralado nos destroços de um barco a vapor com um bando desses! Mas não era hora de ficar se sentimentalizando. Agora a gente tinha que encontrar esse bote – precisava dele pra gente. Então a gente seguiu tremendo e vacilando pelo lado de estibordo, e foi também um deslocamento lento – tive a impressão que a gente levou uma semana pra chegar na popa. Nem sinal do bote. Jim disse que achava que não podia ir adiante – tava tão assustado que não tinha mais força sobrando, disse ele. Mas eu disse vamos, se a gente fica pra trás nesse barco destruído, aí sim a gente tá numa sinuca. Então a gente foi em frente, a esmo. Começou a procurar a popa do tombadilho e encontrou, e aí seguiu tateando pra frente em cima da claraboia, nos agarrando de estore em estore, porque a beirada da claraboia tava dentro d’água. Quando a gente chegou bem perto da porta do corredor transversal, lá tava o bote, sem tirar nem pôr! Eu mal podia ver ele. Nunca me senti tão agradecido. Mais um segundo e eu já me via a bordo, mas bem nesse momento a porta se abriu. Um dos homens enfiou a cabeça pra fora, só mais ou menos a meio metro de mim, e pensei que eu tava perdido. Mas ele puxou de novo a cabeça pra dentro e disse:
Tira esta lanterna desgraçada da vista, Bill!
Atirou um saco de alguma coisa dentro do bote, depois entrou na embarcação e se sentou. Era Packard. Aí Bill ele apareceu e entrou no bote. Packard disse em voz baixa:
Tudo pronto... toca o barco!
Eu quase não conseguia me agarrar nos estores, tava fraco demais. Mas Bill diz:
Espera... ocê revistou ele?
Não. E ocê?
Não. Ele ainda tem a parte dele do dinheiro.
Bem, então, vamos lá... num adianta levar as coisas e deixar o dinheiro.
Ei... será que ele não suspeita o que tamo fazendo?
Talvez não. Mas temos que pegar o dinheiro de qualquer jeito. Vamos.
Então saíram do bote e entraram no navio.
A porta bateu, porque tava no lado adernado, e em meio segundo eu tava no bote, e Jim veio aos trambolhões atrás de mim. Tirei a minha faca e cortei a corda, e aí a gente foi embora!
A gente não tocou em nenhum remo, e a gente não falou nem sussurrou, quase nem respirou. Deslizou rápido, num silêncio mortal, passando pela ponta do tambor da roda e passando pela popa; depois, em mais alguns segundos, a gente tava cem metros além do vapor naufragado, e a escuridão tomou conta de tudo, apagou até o último sinal dos destroços. A gente tinha se safado e sabia disso.
Quando a gente já tava trezentos ou quatrocentos metros corrente abaixo, a gente viu a lanterna aparecer como um pequeno lampejo na porta do tombadilho por um segundo e ficou sabendo que os patifes tinham dado por falta do bote deles e tavam começando a entender que agora tavam numa sinuca de bico tão grande quanto a de Jim Turner.
Aí Jim tomou conta dos remos, e a gente saiu a procurar a nossa balsa. Então foi a primeira vez que eu comecei a me preocupar com os homens – acho que antes não tinha tido tempo. Comecei a pensar como ia ser terrível, mesmo pra assassinos, ficar naquela sinuca. Eu disse pra mim mesmo, não tem como saber, um dia eu ainda posso me tornar um assassino, e então qual vai ser minha reação numa encrenca dessas? Então falei pro Jim:
A primeira luz que a gente avistar, vamos pra praia uns cem metros abaixo ou acima da luz, num lugar com um bom esconderijo pra ocê e o bote, e aí eu vou e invento uma lorota e faço alguém procurar aquele bando e tirar os patifes da enrascada pra eles serem enforcados quando chegar a hora.
Mas essa ideia foi um fracasso, pois logo começou a tempestade de novo, e dessa vez pior do que nunca. A chuva caía aos borbotões, e não tinha luz nenhuma à vista; todo mundo na cama, acho eu. A gente seguia rapidamente pelo rio, procurando luzes e procurando a nossa balsa. Depois de muito tempo a chuva amainou, mas as nuvens ficaram, e os raios continuaram aparecendo de vez em quando, e daí a pouco um lampejo nos mostrou uma coisa preta na nossa frente, flutuando, e a gente foi atrás.
Era a balsa, e a gente ficou muito alegre de subir de novo a bordo. Vimos uma luz então, bem abaixo à direita, na margem. Aí eu disse que ia pra lá. O bote tava meio cheio das coisas saqueadas que o bando tinha roubado, ali no vapor naufragado. Empilhamos tudo na balsa, e eu disse a Jim pra seguir flutuando e acender uma luz quando achasse que já tinha andado uns três quilômetros e deixar ela acesa até eu voltar. Aí peguei nos remos e toquei o bote pra cima da luz. Enquanto eu me deslocava naquela direção, apareceram mais três ou quatro – lá em cima numa encosta. Era uma vila. Cheguei mais perto da luz da margem, levantei os remos e flutuei. Enquanto passava, vi que tinha uma lanterna pendurada no pequeno pau de bandeira de uma barca de casco duplo. Contornei ela deslizando, à procura do vigia, me perguntando onde é que ele dormia; dali a pouco encontrei ele empoleirado nos postes de amarrar as cordas, inclinado pra frente, a cabeça abaixada entre os joelhos. Dei uns dois ou três empurrões no seu ombro e comecei a chorar.
Ele se endireitou, com um olhar espantado, mas quando viu que era só eu, deu um bom bocejo e se espreguiçou, então disse:
Olá, que é que tá acontecendo? Não chora, garoto. Qual é o problema?
Eu disse:
O papai, a mamãe e a minha irmã, e... Aí desatei a chorar. Ele disse:
Oh, dane-se, não leva tudo tão a sério, todos temos nossos problemas, e tudo vai dar certo. O que houve com eles?
Eles tão... eles tão... ocê é o vigia do barco?
Sim – disse ele com um ar bastante satisfeito. – Sou o capitão e o dono, e o imediato, e o piloto, e o vigia e o chefe dos taifeiros: e às vezes sou a carga e os passageiros. Num sou tão rico quanto o velho Jim Hornback e num posso ser danado de generoso e bom pra Tom, Dick e Harry como ele é, nem fazer tanto barulho com o dinheiro como ele faz. Mas eu disse a ele muitas vezes que eu num ia querer trocar de lugar com ele, porque, digo eu, a vida de marinheiro é a vida pra mim, e macacos me mordam se eu ia querer viver uns três quilômetros fora da cidade, onde nunca tá acontecendo nada, nem por toda a grana dele, nem por muito mais ainda. Digo eu...
Interrompi e falei:
Eles tão num aperto terrível e...
Quem são eles?
Ora, o papai, a mamãe e a mana, e a srta. Hooker, e se ocê pegava a sua barca e subia até lá...
Até onde? Onde é que eles tão?
No vapor naufragado.
Que vapor naufragado?
Ora, só tem um.
O quê, ocê não quer dizer o Walter Scott?
Sim.
Deus do céu! O que eles tão fazendo lá, pelo amor de Deus?
Ora, eles não foram lá de propósito.
Claro! Ora, santo Deus, eles não têm chance nenhuma se não saírem de lá rapidíssimo! Ora, como diabos eles entraram numa enrascada dessas?
Fácil. A srta. Hooker tava de visita, lá em cima na cidade…
Sim, Booth’s Landing... continua.
Ela tava de visita, lá em Booth’s Landing, e bem no fim da tarde ela partiu com a criada negra dela na barca movida a cavalo, pra passar a noite na casa da sua amiga, a srta. Fulana de Tal, não lembro do nome, e eles perderam o remo do leme, rodopiaram e saíram flutuando, a popa virada pra frente, por uns três quilômetros, e bateram no vapor naufragado e a barca se dobrou ao meio como um alforje perto dos destroços, e o homem da barca, a criada negra e os cavalos tudo se perdeu, mas a srta. Hooker ela se agarrou e conseguiu subir a bordo do vapor naufragado. Bem, mais ou menos uma hora depois do anoitecer, a gente passou por ali na nossa chata, e tava tão escuro que a gente só percebeu o vapor naufragado quando já tava em cima dele, e então a gente também bateu nos destroços e a chata se dobrou no meio como um alforje perto do vapor. Mas nos safamos todos menos Bill Whipple... e oh, ele era a melhor das criaturas! Queria muito que tivesse sido eu, muito.
Por São Jorge! É a coisa mais aterradora que já me passou pela cabeça. E então o que ocês todos fizeram?
Bem, a gente gritou desesperados, mas era uma imensidão ali, a gente não conseguiu fazer ninguém ouvir. Então papai disse que alguém tinha que ir pra terra e conseguir alguma ajuda. Eu era o único que sabia nadar, então corri pra me jogar n’água, e a srta. Hooker ela disse que se eu não encontrasse ajuda antes, que era pra vir até aqui e procurar o tio dela, que ele dava um jeito. Cheguei na margem um quilômetro e meio mais adiante e andei a esmo desde então, tentando convencer as pessoas a fazer alguma coisa, mas elas diziam, “O quê? Numa noites dessas e com uma correnteza dessas? Não faz sentido, vá procurar a barca a vapor”. Ora, se ocê tá disposto a ir, e...
Por Jackson, eu gostaria, e macacos me mordam se já não decidi que vou de qualquer jeito, mas quem co’os diabos vai pagar por isso? Ocê acha que o seu papai...
Ora, isso tá resolvido. A srta. Hooker ela me disse, em particular, que o seu tio Hornback...
Minha Santa Ingrácia! Ele é tio dela? Olha aqui, ocê vai na direção daquela luz sobre aquele caminho lá adiante e vira pra oeste quando chegar lá, e andando mais ou menos meio quilômetro vai chegar na taberna. Diga aos caras pra levar ocê ventando pra casa de Jim Hornback, e ele vai pagar a conta. E não fica andando à toa por aí, porque ele vai querer saber das notícias. Diga-lhe que vou trazer a sobrinha dele sã e salva antes dele chegar na cidade. Anda, vai! Vou ali na esquina acordar meu engenheiro.
Saí na direção da luz, mas assim que ele virou a esquina eu voltei e entrei no meu bote. Baldeei a água que tinha lá dentro e depois remei costa acima na água calma uns seiscentos metros, e então me enfiei entre uns barcos de madeireiros, pois não podia ficar tranquilo até ver a barca partir. Mas, levando tudo em conta, eu tava me sentindo bastante bem por me dar todo esse trabalho por causa daquele bando, pois bem poucos iam fazer o mesmo. Queria que a viúva soubesse disso. Achava que ela ia ficar orgulhosa de mim por ajudar esses patifes, porque patifes e indesejáveis eram o tipo de caras que a viúva e as pessoas boas mais gostavam.
Bem, em pouco tempo, ali vem o barco naufragado, obscuro e meio apagado, descendo o rio! Uma espécie de calafrio passou por mim, e saí na direção da embarcação. O barco tava muito afundado, e vejo num minuto que não tinha muita chance de ter ninguém com vida lá dentro. Remei em volta e gritei um pouco, mas não tive resposta, tudo mortalmente parado. Senti um pouco de tristeza pelo bando, mas não muita, pois pensei que, se eles podiam aguentar o tranco, eu também podia.
Então ali vem a barca, por isso fui pro meio do rio num longo movimento diagonal a favor da corrente; e quando achei que tava fora do alcance dos olhos, levantei os remos, olhei pra trás e vi a barca ir investigar o barco naufragado à procura dos restos da srta. Hooker, porque o capitão sabia que o tio Hornback dela queria os restos pra si; pouco depois a barca desistiu e foi pra margem, e eu ataquei os remos e desci rápido pelo rio.
Tive a impressão de um tempo muito longo antes da luz de Jim aparecer, e quando surgiu parecia estar a mil quilômetros de distância. No momento que cheguei lá, o céu tava começando a ficar cinza no leste. A gente seguiu pruma ilha, escondeu a balsa, afundou o bote, foi pra cama e dormiu profundamente.
Mark Twain, in As Aventuras de Huckleberry Finn

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