domingo, 28 de outubro de 2018

Aranhas raras e sistemas de escrita esquecidos

A ciência moderna e os impérios modernos foram motivados pela incessante sensação de que talvez algo importante os esperasse além do horizonte – algo que era melhor explorar e dominar. Mas a relação entre ciência e império era muito mais profunda. Não só a motivação como também as práticas dos que erguiam impérios se confundiam com as dos cientistas. Para os europeus modernos, construir um império era um projeto científico, e criar uma disciplina científica era um projeto imperial.
Quando conquistaram a Índia, os muçulmanos não levaram consigo arqueólogos para estudar sistematicamente a história indiana, antropólogos para estudar as culturas indianas, geólogos para estudar os solos indianos ou zoólogos para estudar a fauna indiana. Quando conquistaram a Índia, os britânicos fizeram todas essas coisas. Em 10 de abril de 1802, foi lançado o Grande Levantamento da Índia. Durou 60 anos. Com a ajuda de dezenas de milhares de guias, estudiosos e trabalhadores nativos, os britânicos mapearam cuidadosamente toda a Índia, demarcando fronteiras, medindo distâncias e inclusive calculando, pela primeira vez, a altura exata do monte Everest ou dos outros picos dos Himalaias. Os britânicos exploraram os recursos militares das províncias indianas e a localização das minas de ouro, mas também se deram ao trabalho de coletar informações sobre aranhas indianas raras, catalogar borboletas coloridas, estudar as origens antigas de línguas indianas extintas e escavar ruínas esquecidas.
Mohenjo-daro foi uma das principais cidades da civilização do vale do rio Indo, que floresceu no terceiro milênio a.C. e foi destruída por volta de 1900 a.C. Antes dos britânicos, nenhum governante da Índia – nem os máurias, nem os guptas, nem os sultões de Délhi, nem os grandes mogóis – havia prestado atenção às ruínas. Mas uma pesquisa arqueológica britânica encontrou o sítio em 1922. Uma equipe britânica então o escavou e descobriu a primeira grande civilização da Índia, da qual nenhum indiano tinha conhecimento.
Outro exemplo revelador da curiosidade científica britânica foi a decifração da escrita cuneiforme. Esse foi o principal sistema de escrita usado em todo o Oriente Médio por quase 3 mil anos, mas a última pessoa capaz de lê-lo provavelmente morreu no começo do primeiro milênio da era cristã. Desde então, os habitantes da região frequentemente encontravam inscrições cuneiformes em monumentos, estelas, ruínas antigas e cerâmicas quebradas, entretanto eles não faziam ideia de como ler os rabiscos estranhos e angulares, e, até onde sabemos, nunca tentaram. A escrita cuneiforme chamou a atenção dos europeus em 1618, quando o embaixador espanhol na Pérsia foi visitar as ruínas da antiga Persépolis, onde viu inscrições que ninguém soube lhe explicar. Notícias sobre a escrita desconhecida se espalharam entre os especialistas europeus e aguçaram sua curiosidade. Em 1657, estudiosos europeus publicaram a primeira transcrição de um texto cuneiforme de Persépolis. Seguiram-se cada vez mais transcrições, e por quase dois séculos os estudiosos no Ocidente tentaram decifrá-las. Nenhum deles conseguiu.
Nos anos 1830, um oficial britânico chamado Henry Rawlinson foi enviado à Pérsia para ajudar o xá a treinar seu exército à maneira europeia. Em seu tempo livre, Rawlinson viajou pela Pérsia e certo dia foi conduzido por guias locais até uma falésia nas montanhas Zagros, onde lhe mostraram a enorme inscrição de Behistun. Com aproximadamente 15 metros de altura e 25 de largura, ela fora entalhada no alto de uma falésia por ordem do rei Dario I, em torno de 500 a.C. Estava gravada em escrita cuneiforme em três idiomas: persa antigo, elamita e babilônio. A inscrição era bastante conhecida pelos habitantes locais, mas ninguém era capaz de lê-la. Rawlinson se convenceu de que, se pudesse decifrar a escrita, ele e outros estudiosos poderiam ler várias outras inscrições e textos que, na época, estavam sendo descobertos em todo o Oriente Médio, assim abrindo uma porta para um mundo antigo e esquecido.
O primeiro passo para decifrar o que estava escrito era produzir uma transcrição precisa que pudesse ser enviada para a Europa. Rawlinson desafiou a morte para fazê-lo, escalando a falésia íngreme a fim de copiar as estranhas letras. Ele contratou vários habitantes locais para ajudá-lo, em especial um garoto curdo que escalou até as partes mais inacessíveis da falésia a fim de copiar a parte superior da inscrição. Em 1847, o projeto foi concluído, e uma cópia completa e precisa foi enviada à Europa.
Rawlinson não se deu por satisfeito. Sendo um oficial do exército, ele tinha missões militares e políticas para cumprir, mas sempre que tinha um momento livre se debruçava sobre a escrita secreta. Experimentou um método após outro e finalmente conseguiu decifrar a parte da inscrição em persa antigo. Essa era a mais fácil, já que o persa antigo não era tão diferente do persa moderno, que Rawlinson conhecia muito bem. Uma compreensão do trecho em persa antigo lhe deu a chave que ele precisava para desvendar os segredos dos trechos elamita e babilônio. A grande porta se abriu, e de lá saiu uma enxurrada de vozes antigas, mas vivas – o tumulto de bazares sumérios, as proclamações de reis assírios, as discussões de burocratas babilônios. Sem os esforços de imperialistas europeus modernos como Rawlinson, não teríamos tomado conhecimento de boa parte do destino dos impérios antigos do Oriente Médio. Outro célebre estudioso imperialista foi William Jones. Jones chegou à Índia em setembro de 1783 para servir como juiz na Suprema Corte de Bengala. Ele também foi tão cativado pelas maravilhas da Índia que em menos de seis meses após chegar fundou a Sociedade Asiática. Essa organização acadêmica se dedicava a estudar as culturas, as histórias e as sociedades da Ásia, em particular da Índia. Menos de dois anos depois, Jones publicou suas observações sobre o sânscrito, que se tornaram pioneiras da ciência da linguística comparativa.
Em seus textos, Jones apontou similaridades surpreendentes entre o sânscrito, uma língua indiana antiga que se tornou a língua sagrada do ritual hindu, e o grego e o latim, bem como similaridades entre todas essas línguas e o gótico, o celta, o persa antigo, o francês e o inglês. Assim, “mãe” em sânscrito é “matar”, em latim é “mater” e em celta antigo é “mathir”. Jones supôs que todas essas línguas deviam ter uma mesma origem, tendo se desenvolvido a partir de uma língua ancestral esquecida. Foi, portanto, o primeiro a identificar aquela que mais tarde veio a ser conhecida como família de línguas indo-europeias.
O estudo de Jones foi um marco importante não só devido a suas hipóteses ousadas (e precisas), mas também devido à metodologia ordenada que ele desenvolveu para comparar as línguas. Tal metodologia foi posteriormente adotada por outros acadêmicos, permitindo que estudassem sistematicamente o desenvolvimento de todas as línguas do mundo.
Os linguistas receberam entusiástico apoio imperial. Os impérios europeus acreditavam que, para governar de maneira eficaz, precisavam conhecer as línguas e as culturas de seus súditos. Ao chegar à Índia, os oficiais britânicos passavam até três anos em uma faculdade de Calcutá, onde estudavam direito muçulmano e hindu ao lado de direito britânico; sânscrito, urdu e persa ao lado de grego e latim; e cultura tâmil, bengalesa e hindustâni ao lado de matemática, economia e geografia. O estudo de linguística prestou um auxílio inestimável na compreensão da estrutura e da gramática das línguas locais.
Graças ao trabalho de pessoas como William Jones e Henry Rawlinson, os conquistadores europeus conheciam muito bem seus impérios. Com efeito, muito melhor do que todos os conquistadores anteriores, ou mesmo do que a própria população nativa. Seu conhecimento superior teve vantagens práticas visíveis. Sem tal conhecimento, é improvável que um número irrisório de britânicos tivesse conseguido governar, oprimir e explorar tantas centenas de milhões de indianos por dois séculos. Durante todo o século XIX e início do século XX, menos de 5 mil oficiais britânicos, algo entre 40 mil a 70 mil soldados britânicos e, talvez, outros 100 mil empresários, parasitas, esposas e filhos de britânicos foram o suficiente para conquistar e governar até 300 milhões de indianos.
Mas essas vantagens práticas não foram a única razão pela qual os impérios financiaram o estudo de linguística, botânica, geografia e história. Não menos importante foi o fato de que a ciência deu aos impérios uma justificativa ideológica. Os europeus modernos passaram a acreditar que adquirir novo conhecimento era sempre bom. O fato de que os impérios produziam um fluxo constante de novo conhecimento os rotulava como iniciativas progressistas e positivas. Mesmo hoje, a história de ciências como geografia, arqueologia e botânica não pode se furtar a dar crédito aos impérios europeus, pelo menos indiretamente. A história da botânica tem pouco a dizer sobre o sofrimento dos aborígenes australianos, mas geralmente encontra algumas palavras amáveis para James Cook e Joseph Banks.
Além do mais, o novo conhecimento acumulado pelos impérios tornou possível, pelo menos em teoria, beneficiar as populações conquistadas e lhes trazer os benefícios do “progresso” – proporcionando medicamentos e educação, construindo ferrovias e canais, garantindo justiça e prosperidade. Os imperialistas afirmavam que seus impérios não eram vastos empreendimentos de exploração, e sim projetos altruístas que visavam ao interesse das raças não europeias – nas palavras de Rudyard Kipling, “o fardo do homem branco”:

Tomai o fardo do Homem Branco,
Enviai vossos melhores filhos.
Ide, condenai seus filhos ao exílio
Para servirem aos seus cativos;
Para esperar, com arreios
Com agitadores e selváticos
Seus cativos, servos obstinados,
Metade demônios, metade crianças.

É claro que os fatos muitas vezes contradizem esse mito. Os britânicos conquistaram Bengala, a província mais rica da Índia, em 1764. Os novos governantes se interessavam por pouca coisa além do enriquecimento próprio. Eles adotaram uma política econômica desastrosa que, poucos anos depois, levou à erupção da Grande Fome de Bengala. Começou em 1769, atingiu níveis catastróficos em 1770 e durou até 1773. Cerca de 10 milhões de bengaleses, um terço da população da província, morreram na calamidade.
Na verdade, nem a narrativa da opressão e da exploração, nem a do “fardo do homem branco” correspondem exatamente aos fatos. Os impérios europeus fizeram coisas tão variadas numa gama tão ampla que se pode encontrar inúmeros exemplos para corroborar o que quer que se queira dizer sobre eles. Você pensa que esses impérios eram monstruosidades do mal que espalhavam a morte, a opressão e a injustiça pelo mundo? Facilmente seria possível encher uma enciclopédia com seus crimes. Você quer afirmar que eles na verdade aprimoraram as condições de vida de seus súditos com novos remédios, melhores condições e maior segurança? Você poderia encher outra enciclopédia com suas realizações. Devido à sua íntima colaboração com a ciência, esses impérios exerceram tanto poder e mudaram o mundo a tal ponto que talvez não possam ser simplesmente rotulados como bons ou maus. Criaram o mundo tal como o conhecemos, incluindo as ideologias que usamos para julgá-los.
Mas a ciência também foi usada pelos imperialistas para fins mais sinistros. Biólogos, antropólogos e até mesmo linguistas forneceram provas científicas de que os europeus são superiores a todas as outras raças e, consequentemente, têm o direito (se não, talvez, o dever) de governá-las. Depois que William Jones afirmou que todas as línguas indo-europeias descendem de uma única língua antiga, muitos acadêmicos ficaram ávidos por descobrir quem haviam sido os falantes dessa língua. Eles observaram que os primeiros falantes de sânscrito, que invadiram a Índia a partir da Ásia Central há mais de 3 mil anos, se haviam autodenominado Arya. Os falantes da língua persa mais antiga se autodenominavam Airiia. Por isso, os estudiosos europeus concluíram que as pessoas que falaram a língua primordial que deu origem ao sânscrito e ao persa (e também ao grego, ao latim, ao gótico e ao celta) provavelmente se autodenominaram arianas. Poderia ser uma coincidência que aqueles que fundaram as magníficas civilizações indiana, persa, grega e romana fossem todos arianos?
Em seguida, acadêmicos britânicos, franceses e alemães associaram a teoria linguística sobre os arianos diligentes com a teoria de seleção natural de Darwin e postularam que os arianos eram não só um grupo linguístico como também uma entidade biológica – uma raça. E não qualquer raça, mas uma raça superior de humanos altos, de cabelo claro e olhos azuis, trabalhadores e super-racionais que surgiram das brumas do Norte para assentar as bases da cultura no mundo inteiro. Lamentavelmente, os arianos que invadiram a Índia e a Pérsia se casaram com membros da população nativa que eles encontraram nessas terras, perdendo sua tez clara e seu cabelo loiro e, com estes, a racionalidade e a diligência. As civilizações da Índia e da Pérsia consequentemente entraram em declínio. Na Europa, por outro lado, os arianos preservaram sua pureza racial. É por isso que os europeus conseguiram conquistar o mundo, e por isso estavam aptos para governá-lo – desde que tomassem precauções para não se misturar com as raças inferiores.
Tais teorias racistas, proeminentes e respeitáveis por muitas décadas, se tornaram um anátema tanto entre cientistas quanto entre políticos. As pessoas continuam a conduzir uma luta heroica contra o racismo sem perceber que a frente de batalha mudou, e que o lugar do racismo na ideologia imperialista foi substituído pelo “culturismo”. A palavra “culturismo” não existe, mas já está em tempo de a inventarmos. Entre as elites de hoje, as afirmações sobre os méritos contrastantes de diversos grupos humanos quase sempre são expressadas em termos de diferenças históricas entre culturas, e não de diferenças biológicas entre raças. Já não dizemos “está no sangue”; dizemos “está na cultura”.
Assim, os partidos direitistas da Europa que se opõem à imigração muçulmana geralmente tomam cuidado para evitar a terminologia racial. Os responsáveis por escrever os discursos de Marine le Pen teriam sido dispensados imediatamente se propusessem que a líder da Frente Nacional fosse à televisão para declarar que “não queremos que esses semitas inferiores diluam nosso sangue ariano e degenerem nossa civilização ariana”. Em vez disso, a Frente Nacional francesa, o Partido para a Liberdade holandês, a Aliança para o Futuro da Áustria e similares tendem a argumentar que a cultura ocidental, tal como evoluiu na Europa, é caracterizada por valores democráticos, tolerância e igualdade de gênero, ao passo que a cultura muçulmana, que evoluiu no Oriente Médio, é caracterizada por política hierárquica, fanatismo e misoginia. Visto que as duas culturas são tão diferentes, e visto que muitos imigrantes muçulmanos não estão dispostos (e talvez nem sejam capazes) de adotar valores ocidentais, sua entrada não deve ser permitida, para que eles não fomentem conflitos internos e corroam a democracia e o liberalismo europeus.
Tais argumentos culturistas são alimentados por estudos científicos nas áreas de humanidades e ciências sociais que salientam o assim chamado choque de civilizações e as diferenças fundamentais entre culturas diferentes. Nem todos os historiadores e antropólogos aceitam essas teorias ou apoiam seu uso político. Mas, ao passo que os biólogos, hoje, têm facilidade para repudiar o racismo, explicando simplesmente que as diferenças entre as populações humanas do presente são triviais, é mais difícil para historiadores e antropólogos repudiar o culturismo. Afinal, se as diferenças entre as culturas humanas são triviais, por que deveríamos pagar historiadores e antropólogos para estudá-las?
Os cientistas forneceram ao projeto imperialista conhecimento prático, justificativas ideológicas e aparatos tecnológicos. Sem essa contribuição, é extremamente questionável se os europeus teriam conquistado o mundo. Os conquistadores devolveram o favor fornecendo aos cientistas informações e proteção, apoiando todo tipo de projeto estranho e fascinante e disseminando o modo de pensar científico aos quatro cantos da Terra. Sem o apoio imperial, é duvidoso que a ciência moderna tivesse ido tão longe. Há pouquíssimas disciplinas científicas que não começaram a vida como servas do crescimento imperial e que não devem grande parte de suas descobertas, coleções, edificações e bolsas de estudos à ajuda generosa de oficiais do exército, capitães da marinha e governantes imperiais.
Isso obviamente não é toda a história. A ciência foi apoiada por outras instituições, e não só por impérios. E os impérios europeus cresceram e floresceram graças também a outros fatores além da ciência. Por trás da ascensão meteórica tanto da ciência quanto do império, espreita uma força particularmente importante: o capitalismo. Se não fosse pelos homens de negócios procurando ganhar dinheiro, Colombo não teria chegado à América, James Cook não teria chegado à Austrália e Neil Armstrong jamais teria dado aquele pequeno passo na superfície da Lua.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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