terça-feira, 25 de setembro de 2018

Será que a religião é capaz de curar nossos problemas? - II

Em meu primeiro artigo, eu estava concentrado nos males resultantes de quaisquer sistemas de dogmas apresentados para sua aceitação não com base na verdade, mas em sua utilidade social. O que eu disse se aplica igualmente ao cristianismo, ao comunismo, ao islamismo, ao budismo, ao hinduísmo e a todos os sistemas teológicos, exceto quando contam com fundamentos que fazem um apelo universal, como o dos homens de ciência. Existem, no entanto, argumentos especiais apresentados em favor do cristianismo, relativos a seus supostos méritos especiais. Estes foram expostos, de maneira eloquente e com demonstrações de erudição, por Hebert Butterfield, professor de História Moderna na Universidade de Cambridge, de modo que o tomarei como porta-voz do amplo conjunto de opiniões do qual ele é adepto.
O professor Butterfield busca garantir certas vantagens controversas por meio de concessões que o fazem parecer mais liberal do que de fato é. Reconhece que a Igreja cristã se fiou na perseguição e que foi a pressão vinda de fora que fez com que fosse abandonado essa prática. Ele reconhece que a tensão atual entre a Rússia e o Ocidente é resultado da política de poder que poderia ser esperada mesmo que o governo da Rússia tivesse continuado a aderir à Igreja Ortodoxa Grega. Reconhece que algumas das virtudes que considera especificamente cristãs foram apresentadas por alguns livres-pensadores e têm estado ausentes do comportamento de muitos cristãos. Mas, apesar dessas concessões, ele continua defendendo que os males de que o mundo sofre serão curados pela adesão ao dogma cristão, e inclui no dogma cristão o mínimo necessário: não apenas a crença em Deus e na imortalidade, mas também a crença na Encarnação. Enfatiza a ligação entre o cristianismo e certos acontecimentos históricos, e aceita esses acontecimentos como históricos com base em evidências que certamente não o convenceriam, se não estivessem ligadas à sua religião. Não penso que a evidência relativa ao nascimento virginal seja tal que pudesse convencer qualquer questionador imparcial, se fosse apresentada fora do círculo de crenças teológicas a que ele estava acostumado. Existem numerosas histórias semelhantes na mitologia pagã, mas ninguém sonha em levá-las a sério. O professor Butterfield, no entanto, apesar de ser historiador, parece mostrar-se bastante desinteressado de questões de historicidade, sempre que o assunto está relacionado às origens do cristianismo. Seu argumento, privado de sua urbanidade e de seu ar enganoso de liberalidade, pode ser exposto de maneira grosseira, porém exata, a saber: “Não vale a pena questionar se Cristo realmente nasceu de uma Virgem, concebido pelo Espírito Santo, porque, tendo sido esse ou não o caso, a crença de que o foi oferece a melhor esperança de fuga dos problemas atuais do mundo”. Não se encontra em lugar algum da obra do professor Butterfield a mínima tentativa de provar a verdade de qualquer dogma cristão. Há apenas o argumento pragmático de que a crença no dogma cristão é útil. Há muitos aspectos, no argumento do professor Butterfield, que não são colocados com toda a clareza e precisão que seria de se desejar, e temo que a razão disso é que a clareza e a precisão os tornariam implausíveis. Penso que seu argumento, despido do que não é essencial, é este: seria muito bom se as pessoas amassem seus próximos, mas elas não mostram muita inclinação para tal; Cristo disse que isso era necessário, e, se elas acreditarem que Cristo era Deus, estarão mais propensas a prestar atenção aos ensinamentos d’Ele, a respeito dessa questão, do que se não acreditarem; por conseguinte, homens que desejam que as pessoas amem seus próximos tentarão convencê-las de que Cristo era Deus.
As objeções a esse tipo de argumentação são tantas que é difícil saber por onde começar. Em primeiro lugar, o professor Butterfield e todos os que pensam como ele estão convencidos de que é bom amar o próximo, e suas razões para sustentar essa visão não derivam dos ensinamentos de Cristo. Ao contrário, é porque já sustentam essa visão que consideram os ensinamentos de Cristo evidência de sua divindade. Isso quer dizer que eles têm não uma ética baseada na teologia, mas uma teologia baseada em sua ética. Aparentemente, no entanto, defendem que as bases não teológicas que levam a pensar que é bom amar o próximo provavelmente não terão um apelo muito amplo e, assim, passam a inventar outros argumentos, esperando que estes sejam mais eficientes. Esse é um procedimento muito perigoso. Muitos protestantes costumavam pensar que era tão diabólico desrespeitar o sabá quanto cometer assassinato. Se os convencêssemos de que não era diabólico desrespeitar o sabá, poderiam inferir que não era diabólico cometer assassinato. Toda ética teológica tem uma parte que pode ser defendida de maneira racional e outra parte que não passa da corporificação de tabus supersticiosos. A parte que pode ser defendida racionalmente deveria ser, assim, defendida, já que, de outra maneira, aqueles que descobrirem a irracionalidade da outra parte poderão rejeitar o todo de maneira temerária.
Mas será que o cristianismo, de fato, defendeu uma moralidade melhor do que a de seus rivais e oponentes? Não vejo como algum estudante honesto de história possa afirmar que esse é o caso. O cristianismo tem se distinguido das outras religiões por sua maior prontidão à perseguição. O budismo jamais foi uma religião persecutória. O Império dos Califas era muito mais gentil para com os judeus e cristãos do que os Estados cristãos para com os judeus e maometanos. Não incomodava os judeus e os cristãos, desde que lhe pagassem tributos. O antissemitismo foi promovido pelo cristianismo desde o instante em que o Império Romano se tornou cristão. O fervor religioso das Cruzadas levou a massacres de judeus na Europa Ocidental. Foram cristãos que acusaram Dreyfus injustamente, e livres-pensadores que garantiram sua reabilitação final. Em tempos modernos, abominações foram defendidas pelos cristãos, não apenas quando os judeus eram as vítimas, mas também em outras situações. As abominações do governo do rei Leopoldo no Congo foram escondidas ou minimizadas pela Igreja e só tiveram fim devido a agitações causadas principalmente por livres-pensadores. Toda afirmação de que o cristianismo tem exercido influência moral elevada só pode ser mantida pela completa ignorância ou falsificação das evidências históricas.
A resposta habitual é que os cristãos que faziam as coisas que deploramos não eram verdadeiros cristãos, na medida em que não obedeciam aos ensinamentos de Cristo. Claro que é possível, igualmente, argumentar que o governo soviético não consiste em verdadeiros marxistas, porque Marx ensinava que os eslavos são inferiores aos alemães, e essa doutrina não é aceita pelo Kremlin. Os seguidores de um mestre sempre se afastam, em alguns pontos, da doutrina por ele professada. Aqueles que têm como objetivo fundar uma igreja precisam se lembrar disso. Toda igreja desenvolve um instinto de autopreservação e minimiza as partes da doutrina do fundador que não contribuem para esse objetivo. Mas, de todo modo, o que os apologistas modernos chamam de cristianismo “verdadeiro” é algo que depende de um processo muito seletivo. Ignora muito daquilo que se encontra nos Evangelhos: por exemplo, a parábola das ovelhas e dos cabritos, bem como a doutrina de que os maldosos sofrerão tormento eterno no fogo do inferno. Escolhe certas partes do Sermão da Montanha, apesar de até estas rejeitar na prática. Deixa que a doutrina da não resistência, por exemplo, seja praticada apenas por não cristãos, como Gandhi. Os preceitos que favorece em particular são considerados como imbuídos de moralidade tão elevada que devem ter mesmo origem divina. E, no entanto, o professor Butterfield deve saber que esses preceitos foram proferidos por judeus antes da época de Cristo. Podem ser encontrados, por exemplo, nos ensinamentos de Hillel e nos “Testamentos dos Doze Patriarcas”, sobre os quais o reverendo dr. R.H. Charles, autoridade proeminente nessa questão, diz: “O Sermão da Montanha reflete, em várias passagens, o espírito e até mesmo reproduz as frases exatas do nosso texto: muitas passagens dos Evangelhos exibem vestígios do mesmo, e São Paulo parece ter usado o livro como vade-mécum”. O dr. Charles é da opinião de que Cristo devia conhecer aquela obra. Se, como às vezes nos é dito, a altivez dos ensinamentos éticos prova a divindade de seu autor, é o autor desconhecido desses Testamentos que deve ter sido divino.
É inegável que o mundo está em mau estado, mas não há a menor razão histórica para supor que o cristianismo ofereça uma saída. Nossos problemas surgiram, com a inexorabilidade da tragédia grega, a partir da Primeira Guerra Mundial, da qual os comunistas e os nazistas foram produto. A Primeira Guerra Mundial foi completamente cristã em sua origem. Os três imperadores eram devotos, assim como os integrantes mais belicosos do Gabinete Britânico. A oposição à guerra partiu, na Alemanha e na Rússia, dos socialistas, que eram anticristãos; na França, de Jaurès, cujo assassínio foi aplaudido por cristãos convictos; na Inglaterra, de John Morley, um ateu notório. As características mais perigosas do comunismo são remanescentes da Igreja medieval. Consistem da aceitação fanática de doutrinas reunidas em um Livro Sagrado, da falta de disposição para examinar essas doutrinas de maneira crítica e da perseguição selvagem àqueles que as rejeitam. Não é uma retomada do fanatismo e do preconceito no Ocidente o que devemos procurar para obter uma resposta feliz. Tal retomada, se ocorrer, só significará que as características odiosas do regime comunista se tornaram universais. O mundo precisa é de pessoas razoáveis, tolerância e compreensão da interdependência entre as partes da família humana. Essa interdependência foi enormemente aumentada pelas invenções modernas, e os argumentos puramente mundanos para que se tenha uma atitude gentil para com o próximo são muito mais fortes do que eram anteriormente. É para esse tipo de consideração que devemos olhar, e não para o retorno a mitos obscurantistas. A inteligência, pode-se dizer, causou nossos problemas; mas não é a desinteligência que irá curá-los. Apenas uma inteligência mais sábia poderá tomar o mundo mais feliz.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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