domingo, 30 de setembro de 2018

Ressonância magnética

Já fazia algum tempo que eu estava a pensar num aprendizado extremamente complicado que acontece sem que disso nos apercebamos: somos desenhadores de mapas. A cabeça é um arquivo de mapas. Para ir do quarto para a cozinha, a criança consulta o mapa de sua casa que ela desenhou na sua cabeça. Caminha sem cometer erros. Também os adultos: gavetas, armários, caixas, álbuns. Por causa do mapa da casa que temos na cabeça, ao necessitar de uma agulha, de um lápis, de um martelo, de um remédio, não saímos a procurar a esmo. Vamos diretamente ao lugar indicado pelo mapa. Vêm depois os mapas da redondeza, da cidade, ruas, praças, bares, restaurantes, farmácias, hospitais — tudo organizado. É dizer o nome de um lugar para que o computador espacial cerebral trace imediatamente o caminho para se chegar até lá. Cidades, estradas, país. O universo. Nos céus, as constelações. Norte, sul, leste, oeste. Direções. Os navegadores de antigamente viam as rotas na terra refletidas nas estrelas dos céus. Até a Lua, até Marte... Sem os mapas mentais, somos crianças perdidas numa cidade grande desconhecida.
A minha amnésia passou, mas ficou a pergunta: o que a causou? Fui a um neurologista... Um neurologista é, antes de mais nada, uma pessoa que sabe os mapas do sistema nervoso. Porque o sistema nervoso em tudo se parece com uma cidade, com suas ruas, sinais, tráfego, mão, contramão, semáforos, engarrafamentos, colisões... Ele pediu que eu fizesse um exame chamado “ressonância magnética”. Eu já o havia feito uma vez, por causa de umas tonturas. Não dói nada. Mas é terrível! Não pelo que acontece de fato, mas pelo que se imagina. Colocam a gente deitado numa mesa, cabeça imobilizada com esparadrapos, e nos enfiam num tubo bem apertado, como se fosse uma urna funerária. Aí começa uma barulheira sem fim, marteladas, britadeiras, metralhadoras. Quem não está bem da cabeça corre o risco de entrar em pânico. Mas isso já está previsto: colocam na mão da gente um botão a ser apertado caso se sinta na iminência de ficar louco. Eu quase apertei o botão na primeira vez. O que me salvou foi a imaginação: comecei a pensar asneiras e besteiras. Na segunda vez foi mais fácil porque já fui preparado. Resolvi fechar os olhos e imaginar que estava na minha cama, luz apagada, olhos fechados — e o que eu iria ouvir seriam sonhos. Tratei de entrar nos sonhos. Bateu marreta e me vi de marreta na mão amassando automóveis num ferro-velho. Britadeiras? Lá estava eu com uniforme da prefeitura perfurando o asfalto. Metralhadora? Peguei uma e saí atirando como se fosse o demolidor do futuro. Assim, vivi virtualmente aventuras terríveis que só se tem quando se vai a um playcenter. Porque não é para isso que se vai a um playcenter, para se ter medo e sofrer? E até fiquei triste quando a enfermeira anunciou que o exame havia chegado ao fim. Saí da urna funerária revigorado, adrenalizado e cheio de ideias novas. O terrível não foi o que o exame revelou sobre a minha amnésia. O terrível foi o diagnóstico, igual ao do exame anterior: “Normal, para a idade”. Esse diagnóstico, afirmo, é mais traumático e humilhante que a amnésia.
Agora falando sério”, como na música do Chico: acho que os médicos deveriam preparar os pacientes, contando-lhes o que os aguarda, para que eles se munam de orações, terços, patuás, mantras, santos protetores, espíritos de luz, imaginação, a fim de espantar os fantasmas do exame. Como já disse: o terror não se encontra na coisa física. O terror se encontra na imaginação. Um amigo querido, segundo o que me relatou a sua viúva, tentou fazer o dito exame três vezes e não aguentou. Morreu sem diagnóstico.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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