quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Dias de Cinza: 1945-1949 (1)


Um segredo vale o que valem aqueles de quem temos de guardá-lo. Ao acordar, o meu primeiro impulso foi dar parte da existência do Cemitério dos Livros Esquecidos ao meu melhor amigo. Tomás Aguilar era um colega de estudos que dedicava o tempo livre e o talento à descoberta de geringonças engenhosíssimas mas de escassa aplicação prática, como o dardo aerostático ou o pião-dínamo. Ninguém melhor que Tomás para compartilhar aquele segredo. Sonhando acordado, imaginava o meu amigo Tomás e eu próprio apetrechados ambos de lanternas e bússola, prestes a desvendar os segredos daquela catacumba bibliográfica. Depois, recordando a minha promessa, decidi que as circunstâncias aconselhavam o que nos romances de intriga policial se denominava outro modus operandi. Ao meio-dia abordei o meu pai para o questionar acerca daquele livro e de Julián Carax, que no meu entusiasmo tinha imaginado célebres em todo o mundo. O meu plano era deitar mão a todas as suas obras e lê-las de fio a pavio em menos de uma semana. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o meu pai, livreiro de raça e bom conhecedor dos catálogos editoriais, nunca tinha ouvido falar de A Sombra do Vento ou de Julián Carax. Intrigado, o meu pai inspecionou a página com os dados da edição.
Segundo isto, este exemplar faz parte de uma edição de dois mil e quinhentos exemplares impressa em Barcelona, por Cabestany Editores, em Dezembro de 1935.
Conheces essa editora?
Fechou há anos. Mas a edição original não é esta, e sim outra de Novembro do mesmo ano, mas impressa em Paris... A editora é Galliano Neuval. Não me diz nada.
Então o livro é uma tradução? – perguntei, desconcertado.
Não refere que o seja. Pelo que aqui se vê, o texto é original.
Um livro em castelhano, editado primeiro em França?
Não será a primeira vez, com os tempos que correm – aduziu o meu pai. – Se calhar o Barceló pode-nos ajudar...
Gustavo Barceló era um velho colega do meu pai, dono de uma livraria cavernosa na rua Fernando, que capitaneava a fina-flor do grêmio de alfarrabistas. Vivia perpetuamente agarrado a um cachimbo apagado que desprendia eflúvios de mercado persa e descrevia-se a si próprio como o último romântico. Barceló sustentava que na sua linhagem havia um parentesco distante com lorde Byron, apesar de ser natural de Caldas de Montbuy. Talvez no intuito de evidenciar esta ligação, Barceló vestia invariavelmente à maneira de um dândi do século dezenove, usando lenço de pescoço, sapatos de verniz brancos e um monóculo sem graduação que segundo as más-línguas não tirava nem na intimidade da retrete. Na realidade, o parentesco mais significativo a seu crédito era o do progenitor, um industrial que tinha enriquecido por meios mais ou menos turvos em finais do século XIX. Segundo me explicou o meu pai, Gustavo Barceló, tecnicamente, nadava em dinheiro, e a livraria era mais paixão que negócio. Amava os livros sem reserva e, embora ele o negasse rotundamente, se alguém entrava na sua livraria e se apaixonava por um exemplar cujo preço não podia comportar, ele fazia um abatimento até onde fosse necessário, ou inclusivamente oferecia-lho se calculasse que o comprador era um leitor de categoria e não um diletante borboleteador. À margem destas peculiaridades, Barceló possuía uma memória de elefante e uma pedantaria que não lhe ficava atrás em porte ou sonoridade, mas se alguém sabia de livros estranhos, era ele. Naquela tarde, depois de fechar a loja, o meu pai sugeriu que fôssemos até ao café Els Quatre Gats, na Rua Montsió, onde Barceló e os seus compinchas mantinham uma tertúlia bibliófila sobre poetas malditos, línguas mortas e obras-primas abandonadas à mercê da traça.
Els Quatre Gats ficava a um pulo de casa e era um dos meus recantos predilectos de toda a Barcelona. Era ali que os meus pais se tinham conhecido no ano de 32, e eu atribuía em parte o meu bilhete de ida para a vida ao encanto daquele velho café. Dragões de pedra custodiavam a fachada encravada num cruzamento de sombras e os seus candeeiros de gás congelavam o tempo e as lembranças. No interior, as pessoas fundiam-se com os ecos de outras épocas. Guarda-livros, sonhadores e aprendizes de gênio compartilhavam mesa com a miragem de Pablo Picasso, Isaac Albéniz, Federico Garcia Lorca ou Salvador Dali. Ali, qualquer pobre diabo se podia sentir por uns instantes figura histórica pelo preço de um garoto.
Ora, Sempere – proclamou Barceló ao ver entrar o meu pai -, o filho pródigo. A que se deve a honra?
A honra deve-a ao meu filho Daniel, don Gustavo, que acaba de fazer uma descoberta.
Então venham sentar-se ao pé de nós, que há que celebrar esta efeméride – proclamou Barceló.
Efeméride? – sussurrei ao meu pai.
O Barceló só se expressa em esdrúxulas – respondeu o meu pai a meia voz. – Tu não digas nada, que ele ganha coragem.
Os companheiros de tertúlia abriram lugar para nós no seu círculo e Barceló, que gostava de se mostrar liberal em público, insistiu em convidar-nos.
Que idade tem o moço? – inquiriu Barceló, olhando-me de soslaio.
Quase onze anos – declarei.
Barceló sorriu-me, velhaco.
Ou seja, dez. Não ponhas anos a mais, mariola, que a vida lá tos porá. Vários dos companheiros de tertúlia murmuraram o seu assentimento.
Barceló fez sinais a um criado com aspecto iminente de ser declarado monumento histórico para que se aproximasse a fim de tomar nota.
Um conhaque para o meu amigo Sempere, do bom, e para o rebento um batido de leite, que tem de crescer. Ah, e traga umas lasquinhas de presunto, mas que não sejam como as de antes, hem?, que para borracha já temos a casa Pirelli – rugiu o livreiro.
O criado assentiu e partiu, arrastando os pés e a alma.
É o que eu digo – comentou o livreiro. – Como é que há-de haver trabalho, se neste país as pessoas não se reformam nem depois de mortas? Veja o Cid. É que não há remédio.
Barceló saboreou o seu cachimbo apagado, com o olhar aquilino a perscrutar com interesse o livro que eu segurava nas mãos. Apesar da sua fachada brincalhona e de tanto palavreado, Barceló era capaz de farejar uma boa presa como um lobo fareja o sangue.
Ora vejamos – disse Barceló, fingindo desinteresse. – Que me trazem vocês?
Dirigi um olhar ao meu pai. Ele assentiu. Sem mais preâmbulos, estendi o livro a Barceló. O livreiro pegou-lhe com mão conhecedora. Os seus dedos de pianista exploraram rapidamente textura, consistência e estado. Exibindo o seu sorriso florentino, Barceló localizou a página de edição e inspecionou-a com intensidade policial pelo espaço de um minuto. Os outros observavam-no em silêncio, como se esperassem um milagre ou autorização para respirar de novo.
Carax. Interessante – murmurou num tom impenetrável.
Estendi de novo a mão para recuperar o livro. Barceló arqueou as sobrancelhas, mas devolveu-mo com um sorriso glacial.
Onde é que o encontraste, garoto?
É um segredo – repliquei, sabendo que o meu pai devia estar a sorrir por dentro.
Barceló franziu o cenho e desviou o olhar para o meu pai.
Amigo Sempere, porque é o senhor e por todo o apreço que lhe tenho e em honra à amizade que nos une como a dois irmãos, fiquemo-nos por duzentas pesetas e não se fala mais nisso.
Isso vai ter de o discutir com o meu filho – aduziu o meu pai. – O livro é dele.
Barceló ofereceu-me um sorriso lupino.
Que dizes, pequenote? duzentas pesetas não é mau para uma primeira venda... Sempere, este seu miúdo há-de fazer carreira neste negócio.
Os companheiros de tertúlia riram-se da graça. Barceló olhou para mim satisfeito, puxando da sua carteira de pele. Contou os quarenta duros, que naquela época eram uma verdadeira fortuna, e estendeu-mos. Eu limitei-me a recusar em silêncio. Barceló franziu o cenho.
Olha que a cobiça é inevitavelmente um pecado mortal, hem? – aduziu.
Vamos, trezentas pesetas e abres uma caderneta de aforro, que na tua idade há que pensar no futuro.
Recusei de novo. Barceló lançou um olhar irado ao meu pai através do monóculo.
Não olhe para mim – disse o meu pai. – Eu aqui venho só como acompanhante.
Barceló suspirou e observou-me detidamente.
Vamos lá a ver, menino; mas o que é que tu queres?
O que eu quero é saber quem é Julián Carax, e onde posso encontrar outros livros que ele tenha escrito.
Barceló riu dissimuladamente e meteu de novo a carteira ao bolso.
Era, um acadêmico. Mas o que dá você a comer a este miúdo, Sempere? - gracejou.
O livreiro inclinou-se para mim com tom confidencial e, por um instante, pareceu-me entrever no seu olhar um certo respeito que lá não estava momentos atrás.
Vamos fazer um negócio – disse ele. – Amanhã, domingo, à tarde, passas pela biblioteca do Ateneo e perguntas por mim. Tu trazes o teu livro para que eu o possa examinar bem, e eu conto-te o que sei de Julián Carax. Quid pro quo.
Quid pro quê?
Latim, rapaz. Não há línguas mortas, mas sim cérebros amodorrados.
Parafraseando, significa que não há duros a quatro pesetas, mas que simpatizei contigo e te vou fazer um favor.
Aquele homem destilava uma oratória capaz de aniquilar moscas em voo, mas suspeitei de que, se queria averiguar alguma coisa sobre Julián Carax, mais me valeria ficar de boas relações com ele. Sorri-lhe beatificamente, mostrando o meu deleite com os latinórios e o seu verbo fácil.
Não te esqueças, amanhã, no Ateneo – sentenciou o livreiro. – Mas leva o livro, ou não há negócio.
De acordo.
A conversa desvaneceu-se lentamente no murmúrio dos restantes companheiros de tertúlia, derivando para a discussão de uns documentos encontrados nas caves do Escorial que sugeriam a possibilidade de don Miguel de Cervantes não ter sido senão o pseudônimo literário de uma peluda mulheraça toledana. Barceló, ausente, não participou no debate bizantino e limitou-se a observar-me do seu monóculo com um sorriso velado.
Ou talvez olhasse somente para o livro que eu segurava nas mãos.
Carlos Ruiz Zafón, in A sombra do vento

Nenhum comentário:

Postar um comentário