quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Da guerra e dos guerreiros

Não queremos ser poupados por nossos melhores inimigos, nem por aqueles que amamos profundamente. Então deixai que vos diga a verdade!
Meus irmãos de guerra! Eu vos amo profundamente, fui e sou vosso igual. E sou também vosso melhor inimigo. Então deixai que vos diga a verdade!
Sei do ódio e da inveja em vosso coração. Não sois grandes o bastante para não conhecer ódio e inveja. Então sede grandes o bastante para não vos envergonhar deles!
E, se não podeis ser santos do conhecimento, sede ao menos seus guerreiros. Estes são os companheiros e precursores de tal santidade.
Vejo muitos soldados: quisera ver muitos guerreiros! “Uniforme” chama-se aquilo que vestem: que não seja uniforme o que com ele escondem!
Deveis ser, para mim, aqueles cujos olhos sempre buscam um inimigo — o vosso inimigo. E em alguns de vós existe um ódio à primeira vista.
Vosso inimigo deveis procurar, vossa guerra deveis conduzir, por vossos pensamentos! E, se vosso pensamento sucumbir, vossa retidão deve ainda gritar vitória!
Deveis amar a paz como meio para novas guerras. E a paz breve, mais que a longa.
Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas o triunfo. Vosso trabalho seja uma luta, vossa paz seja um triunfo!
Só podemos estar calados e tranquilos quando temos arco e flecha: do contrário, falamos e brigamos. Que vossa paz seja um triunfo!
Dizeis que a boa causa santifica até mesmo a guerra? Eu vos digo: é a boa guerra que santifica toda causa.
A guerra e a coragem fizeram mais coisas grandes do que o amor ao próximo. Não a vossa compaixão, mas a vossa bravura salvou até agora os desventurados.
O que é bom?”, perguntais. Ser bravo é bom. Deixai que as garotas pequenas digam: “Bom é o que é bonito e tocante ao mesmo tempo”.
Diz-se que não tendes coração: mas vosso coração é genuíno, e eu amo o pudor da vossa cordialidade. Envergonhai-vos de vossa maré-cheia, enquanto outros se envergonham de sua vazante.
Sois feios? Pois muito bem, irmãos! Cercai-vos do sublime, o manto do feio!
E, quando vossa alma se torna grande, também se torna petulante, 30 e em vossa sublimidade existe maldade. Eu vos conheço.
Na maldade, o petulante e o fracote se encontram. Mas eles se entendem mal. Eu vos conheço.
Podeis ter apenas inimigos para odiar, não inimigos para desprezar. Deveis ter orgulho de vosso inimigo: então os sucessos de vosso inimigo serão também vossos.
Rebelião — esta é a nobreza do escravo. Que a vossa nobreza seja obediência! Que até o vosso mandar seja um obedecer!
Para um bom guerreiro, “tu deves” soa mais agradável do que “eu quero”. E tudo de que gostais, deixai que primeiro vos seja ordenado.
Que o vosso amor à vida seja amor à vossa mais alta esperança: e vossa mais alta esperança seja o mais alto pensamento da vida!
O vosso mais alto pensamento, porém, deveis deixar que eu o ordene a vós — e ele diz: o homem é algo que deve ser superado.
Vivei, então, vossa vida de obediência e de guerra! Que importa viver muito tempo? Que guerreiro quer ser poupado?
Eu não vos poupo, eu vos amo profundamente, meus irmãos na guerra! —
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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