sexta-feira, 6 de julho de 2018

Quatro filhas

Tenho quatro filhas. A mais velha é jovem demais para ser tão desencantada. Aos 44 anos, parece mais desiludida do que eu. Mas esse desencanto radical não a imobiliza; ao contrário, é sua maior força, pois observa tudo à sua volta com olhar crítico. Ela vê injustiça e opróbrio onde aparentemente reinam justiça e honra, e prevê conflitos terríveis em territórios pacificados. Além disso, o amor que sente por crianças contraria sua visão desencantada. Talvez ela nem perceba isso. Mas eu, mãe, sim.
Minha terceira filha é uma incansável militante virtual. Entusiasta da revolta egípcia, diz que o movimento da praça Tahrir inspirou os indignados da Espanha e pode inspirar milhões de brasileiros. Ela tem 1667 seguidores no Facebook e pretende convocar os brasileiros indignados para uma grande manifestação no dia 5 de setembro. A data me parece arbitrária, mas o ser humano é arbitrário. Considera-se uma líder nata, mas, para os olhos de sua mãe, essa liderança só tem casca. Ainda não vi a fruta e menos ainda as sementes dessa liderança política.
Minha segunda filha é silenciosa e ensimesmada. No fundo ela é explosiva como são os tímidos, esses sofredores quietos, que armazenam fogo e furor. Durante uma recente reunião com minhas três amigas (nós quatro somamos mais de três séculos de vida), ela entrou na sala e sem mais nem menos desancou o Judiciário, disse que todos os males deste país decorrem da cumplicidade de juízes e desembargadores com criminosos de colarinho-branco. Minhas amigas se sobressaltaram. Afinal, são juízas aposentadas e exerceram sua profissão com honestidade. Na verdade, ela quis golpear as ancas de sua mãe, sendo eu também uma juíza aposentada. Apenas ri, pois conheço essa filha, cuja maior fraqueza intelectual, que é também sua maior franqueza, é generalizar. Ela sempre toma a parte pelo todo, e o outro nome dessa moça mimada é Metonímia. No fundo é uma preguiçosa, não se esforça para entender nossa sociedade patrimonial, que mais parece uma sólida pirâmide de privilégios. Ainda assim, nosso sistema judiciário funciona, apesar das falhas gritantes, da corrupção, do corporativismo e da excessiva morosidade. Essa filha é mais volúvel que o clima de São Paulo, já ingressou em três faculdades e até hoje é uma moça sem profissão. Vive às custas de minha aposentadoria, e não vive mal. As explosões de humor são fogos de artifício, no dia seguinte ela volta ao silêncio e à quietude interior.
Minha caçulinha, filha temporã, é de uma beleza incomum. Sem dúvida puxou ao finado pai. Mas a ambição dessa beldade, mais que incomum, é descomunal. Abre um novo negócio a cada ano e atrai homens de todas as idades e profissões, para depois rejeitá-los com uma crueldade de meter medo. Não confia nos homens, só no trabalho. Ela é tão cheia de si e tão insolente, que a maneira mais segura de não perdê-la de vez é desprezá-la. Mas isso é inadmissível para o coração de uma mãe. O dia que ela se dispôs a ler meus pobres manuscritos — um exercício de aposentada que condenou e absolveu milhares de pessoas —, disse que eu plagiava Kafka.
Rasgue esses textos, pare de escrever e vá passear com suas amigas”, sentenciou essa malcriada.
Não sei se ela leu a obra de Kafka, traduzida com esmero por Modesto Carone; sei que é incapaz de observar uma orquídea e de pensar na beleza de um poema ou no que sugerem os versos de um grande poema. Essa temporã parece uma versão feminina de um gladiador do nosso tempo, um gladiador que trava uma luta de morte com o próprio tempo. Não hesita em zombar das irmãs, que desconhecem o sucesso e o poder, mas não os prazeres e tormentos da paixão. Há uns três meses, quando liguei para dizer que queria vê-la, ela disse que estava em Miami e depois ia viajar para tantas cidades da Ásia que fiquei exausta só de ouvir esse itinerário alucinado.
Um dia essa águia poderosa pousa na minha casa, pensei. Esse dia tardou, mas chegou.
No domingo retrasado, quando eu e minhas três filhas almoçávamos em casa, a caçula apareceu com presentes asiáticos, que distribuiu para as irmãs e para mim. Depois, em vez de falar sobre a viagem e exportação de seus produtos, não abriu a boca nem para comer. Tampouco parecia ansiosa para ir embora. Ficou imóvel, com uma expressão de devaneio… Podia ser a diferença de fuso horário, mas meu sentimento desconsiderou essa hipótese. O que aconteceu na arena da vida dessa bela guerreira? Chamei-a para conversar no meu escritório, onde desabou num choro convulsivo. Quando abracei e beijei essa fortaleza enfim frágil, ela balbuciou: “Mãe, mãe…”. Não a induzi a falar. Mas percebi que ela estava apaixonada. Só faltava isso para não ser uma antípoda de suas irmãs e de mim.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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