Tenho quatro
filhas. A mais velha é jovem demais para ser tão desencantada. Aos
44 anos, parece mais desiludida do que eu. Mas esse desencanto
radical não a imobiliza; ao contrário, é sua maior força, pois
observa tudo à sua volta com olhar crítico. Ela vê injustiça e
opróbrio onde aparentemente reinam justiça e honra, e prevê
conflitos terríveis em territórios pacificados. Além disso, o amor
que sente por crianças contraria sua visão desencantada. Talvez ela
nem perceba isso. Mas eu, mãe, sim.
Minha terceira
filha é uma incansável militante virtual. Entusiasta da revolta
egípcia, diz que o movimento da praça Tahrir inspirou os indignados
da Espanha e pode inspirar milhões de brasileiros. Ela tem 1667
seguidores no Facebook e pretende convocar os brasileiros indignados
para uma grande manifestação no dia 5 de setembro. A data me parece
arbitrária, mas o ser humano é arbitrário. Considera-se uma líder
nata, mas, para os olhos de sua mãe, essa liderança só tem casca.
Ainda não vi a fruta e menos ainda as sementes dessa liderança
política.
Minha segunda filha
é silenciosa e ensimesmada. No fundo ela é explosiva como são os
tímidos, esses sofredores quietos, que armazenam fogo e furor.
Durante uma recente reunião com minhas três amigas (nós quatro
somamos mais de três séculos de vida), ela entrou na sala e sem
mais nem menos desancou o Judiciário, disse que todos os males deste
país decorrem da cumplicidade de juízes e desembargadores com
criminosos de colarinho-branco. Minhas amigas se sobressaltaram.
Afinal, são juízas aposentadas e exerceram sua profissão com
honestidade. Na verdade, ela quis golpear as ancas de sua mãe, sendo
eu também uma juíza aposentada. Apenas ri, pois conheço essa
filha, cuja maior fraqueza intelectual, que é também sua maior
franqueza, é generalizar. Ela sempre toma a parte pelo todo, e o
outro nome dessa moça mimada é Metonímia. No fundo é uma
preguiçosa, não se esforça para entender nossa sociedade
patrimonial, que mais parece uma sólida pirâmide de privilégios.
Ainda assim, nosso sistema judiciário funciona, apesar das falhas
gritantes, da corrupção, do corporativismo e da excessiva
morosidade. Essa filha é mais volúvel que o clima de São Paulo, já
ingressou em três faculdades e até hoje é uma moça sem profissão.
Vive às custas de minha aposentadoria, e não vive mal. As explosões
de humor são fogos de artifício, no dia seguinte ela volta ao
silêncio e à quietude interior.
Minha caçulinha,
filha temporã, é de uma beleza incomum. Sem dúvida puxou ao finado
pai. Mas a ambição dessa beldade, mais que incomum, é descomunal.
Abre um novo negócio a cada ano e atrai homens de todas as idades e
profissões, para depois rejeitá-los com uma crueldade de meter
medo. Não confia nos homens, só no trabalho. Ela é tão cheia de
si e tão insolente, que a maneira mais segura de não perdê-la de
vez é desprezá-la. Mas isso é inadmissível para o coração de
uma mãe. O dia que ela se dispôs a ler meus pobres manuscritos —
um exercício de aposentada que condenou e absolveu milhares de
pessoas —, disse que eu plagiava Kafka.
“Rasgue esses
textos, pare de escrever e vá passear com suas amigas”, sentenciou
essa malcriada.
Não sei se ela leu
a obra de Kafka, traduzida com esmero por Modesto Carone; sei que é
incapaz de observar uma orquídea e de pensar na beleza de um poema
ou no que sugerem os versos de um grande poema. Essa temporã parece
uma versão feminina de um gladiador do nosso tempo, um gladiador que
trava uma luta de morte com o próprio tempo. Não hesita em zombar
das irmãs, que desconhecem o sucesso e o poder, mas não os prazeres
e tormentos da paixão. Há uns três meses, quando liguei para dizer
que queria vê-la, ela disse que estava em Miami e depois ia viajar
para tantas cidades da Ásia que fiquei exausta só de ouvir esse
itinerário alucinado.
Um dia essa águia
poderosa pousa na minha casa, pensei. Esse dia tardou, mas chegou.
No domingo
retrasado, quando eu e minhas três filhas almoçávamos em casa, a
caçula apareceu com presentes asiáticos, que distribuiu para as
irmãs e para mim. Depois, em vez de falar sobre a viagem e
exportação de seus produtos, não abriu a boca nem para comer.
Tampouco parecia ansiosa para ir embora. Ficou imóvel, com uma
expressão de devaneio… Podia ser a diferença de fuso horário,
mas meu sentimento desconsiderou essa hipótese. O que aconteceu na
arena da vida dessa bela guerreira? Chamei-a para conversar no meu
escritório, onde desabou num choro convulsivo. Quando abracei e
beijei essa fortaleza enfim frágil, ela balbuciou: “Mãe, mãe…”.
Não a induzi a falar. Mas percebi que ela estava apaixonada. Só
faltava isso para não ser uma antípoda de suas irmãs e de mim.
Milton Hatoum,
in Um solitário à espreita
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