sábado, 7 de julho de 2018

O bote e a tripulação de Ahab • Fedallah

Capitão Ahab 

Quem teria imaginado uma coisas dessas, Flask!”, exclamou Stubb; “se eu tivesse apenas uma perna, você não me veria num bote, a não ser talvez para tapar um buraco com a minha perna de pau. Ah! Ele é um velho formidável!”
Não acho nada de surpreendente, por conta disso”, disse Flask. “Se a perna dele fosse cortada até os quadris, aí seria diferente. Isso o tornaria inválido; mas, você sabe, ele tem um dos joelhos e boa parte do outro.”
Não sei, não, meu pequeno; nunca o vi de joelhos.”

* * * * * * *
Entre os conhecedores de baleias, discute-se muito se, considerando a importância fundamental de sua vida para o êxito da viagem, é certo um capitão baleeiro arriscar essa vida tomando parte ativa nos perigos da pesca. Assim os soldados de Tamerlão sempre discutiam, com lágrimas nos olhos, se aquela vida valiosa deveria ser exposta ao fragor da batalha.
Mas com Ahab a questão assumia um aspecto diverso. Considerando-se que em duas pernas o homem é apenas uma criatura claudicante diante do perigo; considerando-se que a perseguição de baleias se dá sempre em grandes e extraordinárias dificuldades; que cada momento isolado, de fato, assim encerra um risco; sob tais circunstâncias será prudente um aleijado subir num bote baleeiro durante a caçada? De um modo geral, os proprietários do Pequod deveriam achar que não.
Ahab bem sabia que seus amigos em terra não se preocupariam com o fato de ele entrar num bote em meio às vicissitudes relativamente inócuas da caçada, só para estar perto da ação e dar ordens pessoalmente, mas ter um bote exclusivamente à sua disposição para conduzir a caçada – e, além disso, equipado com cinco homens adicionais, para tripular este bote, o Capitão Ahab bem sabia que tais conceitos generosos jamais passariam pela cabeça dos proprietários do Pequod. Portanto, não havia solicitado a eles uma tripulação para o bote, nem de forma alguma havia demonstrado seus desejos nesse sentido. Não obstante, havia tomado em particular todas as providências necessárias quanto ao caso. Até se tornar pública a descoberta de Archy, os marinheiros mal poderiam imaginar tal coisa, embora pouco depois de deixarem o porto, todos tendo terminado a rotina de preparar os botes para o serviço, algum tempo depois disso, Ahab tivesse sido visto ocupado com a preparação de toletes para o bote que se considerava de reserva com as próprias mãos, e até mesmo cortando pequenos espetos de madeira, que são fixados na ranhura da proa para deixar correr a corda: quando viram tudo isso, e, em especial, sua solicitude ao colocar um forro suplementar para revestir o fundo do bote, como que para fazê-lo suportar melhor a pressão aguda de sua perna de marfim, e também a ansiedade que demonstrou ao modelar com precisão a tábua de coxa, como é chamada às vezes a peça horizontal da proa do bote para segurar o joelho quando se atira a lança contra a baleia; quando viram quantas vezes ele subia naquele bote e ficava com o seu único joelho preso na concavidade semicircular da tábua, e com um cinzel de carpinteiro tirando um pouco ali, acertando um pouco aqui; todas essas coisas, repito, despertaram muito interesse e curiosidade. Mas quase todos pensaram que esses cuidados especiais preparatórios de Ahab visavam apenas à caçada final de Moby Dick; pois ele já havia revelado sua intenção de dar caça ao monstro mortal pessoalmente. Mas tal suposição de modo algum envolvia a mais remota suspeita de que houvesse uma tripulação designada para aquele bote.
Ora, com os fantasmas subalternos, qualquer mistério que ainda houvesse logo se dissipou; pois num baleeiro os mistérios logo mínguam. Além disso, vez por outra, chega uma indefinível miscelânea oriunda de estranhas nações, dos mais remotos tugúrios e covis da terra para guarnecer os baleeiros de foragidos flutuantes; e os próprios navios muitas vezes recolhem estranhas criaturas à deriva no mar aberto, a se debater sobre tábuas, restos de naufrágios, remos, botes, canoas, juncos japoneses destroçados, e não sei mais o quê; tanto que o próprio Belzebu poderia subir pelo costado e entrar na cabine para conversar com o capitão, que isso não causaria nenhuma comoção irrefreável no castelo de proa.
Mas, seja como for, o certo é que logo os fantasmas subalternos encontraram seus lugares em meio à tripulação, embora ainda fossem um pouco diferentes dos outros; entretanto Fedallah, o homem do turbante na cabeça, manteve-se um mistério protegido até o fim. De onde viera até este mundo gentil, que tipo de ligação inexplicável o unia ao destino particular de Ahab, a ponto de exercer sobre este uma espécie de pressentida influência, só Deus sabe; mas parecia exercer até mesmo autoridade sobre ele. Mas não era possível manter um ar de indiferença em relação a Fedallah. Era uma dessas criaturas que as pessoas civilizadas e domésticas da zona temperada veem apenas em sonhos, e ainda assim vagamente; mas cujo tipo às vezes ocorre nas imutáveis comunidades Asiáticas, especialmente nas ilhas Orientais a leste do continente – aqueles países isolados, imemoriais e imutáveis, que mesmo nos tempos modernos ainda guardam muito do primitivo e do fantasmagórico das primeiras gerações da terra, quando a recordação do primeiro homem era uma lembrança nítida, e todos os homens seus descendentes, ignorando de onde ele veio, olhavam uns para os outros como verdadeiros fantasmas, e perguntavam ao sol e à lua por que foram criados e com qual finalidade; quando no entanto, segundo o Gênese, os anjos de fato se casavam com as filhas dos homens, e – acrescentam os rabinos não canônicos – também os demônios se entregavam a amores terrenos.
Herman Melville, in Moby Dick

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