sábado, 7 de julho de 2018

O abismo que anda

A adolescência é uma suspensão do tempo. Um rombo no desenrolar do existir. O sujeito não é mais a criança que foi, mas ainda não chega a ser o adulto que será. Está em um vácuo, à deriva, incapaz de fixar imagens e de estabelecer limites.
É um erro reduzir a adolescência ao desleixo, à desatenção e ao descaso. Um erro grosseiro desconsiderar a dor que ela inclui. Tudo o que não faz João Gilberto Noll nos dois novos livros que acaba de lançar para o leitor infantojuvenil: Sou eu! e O nervo da noite (editora Scipione).
Noll não “adolesce” para escrever para os jovens. Não simula uma linguagem juvenil, tampouco finge que tem espinhas no rosto. Fala de seu lugar de homem grisalho e dali, sem abrir mão do que é, intransigente, escreve de igual para igual.
Não faz “literatura para jovens”; escreve como sempre escreveu, com fúria e corpo. Escreve, antes de tudo, para si, e não para os outros. Se trabalha com personagens incipientes, ainda em formação, isso não diminui seu ímpeto nem disciplina.
Adolescentes se atrapalham com as palavras, a fúria que levam no peito transborda as normas da gramática e não se fixa. Eles podem (e devem) suspeitar das noções estabelecidas. Habitam um não-lugar, e é de lá desse intervalo que nos falam. Mesmo quando silenciam, ainda é lá que estão, em um fosso.
Leio os dois relatos breves de Noll e penso em dois célebres “romances de formação”. Primeiro, em O jovem Torless, que Robert Musil publicou em 1906 – o ano em que meu falecido pai nasceu. Nele encontro uma frase que captura a dor de crescer: “Torless andava inquieto, em vão tateava aqui e ali à procura de alguma coisa nova que lhe pudesse servir de apoio”.
A mesma insuficiência se repete nas linhas finais de outro romance de formação, O apanhador no campo de centeio, que J.D. Salinger publicou em 1951 – ano em que eu mesmo nasci. Ali se lê: “A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo”.
Tomo esses dois romances de nascimento para ler os relatos de Noll. O longo intervalo de tempo (meio século, e depois mais meio) não os separa. Nem Musil nem Salinger escreveram seus livros “para jovens”, o que nunca impediu que eles, até hoje, seduzam jovens de todo o mundo. Noll também não. Nenhum deles buscou essa monstruosidade que é a “linguagem juvenil”. A web está cheia de idosos que gaguejam em internetês; a literatura contemporânea, repleta de jovens que, ao contrário, prezam a potência da língua. A linguagem nada garante a respeito de ninguém.
Nem Musil nem Salinger escreveram seus romances para “explicar” a juventude, para “ilustrá-la” ou para reduzi-la a “tipos psicológicos”, ou qualquer outra tolice do gênero. Nenhum deles perseguiu a “maneira de ser” juvenil ou planejou reduzir sua escrita aos clichês com que, em geral, a definimos. Basta contrapor as narrativas de Musil e de Salinger aos dois pequenos relatos de Noll para entender que eles não se contentam com o conhecido.
Sou eu! é a história de dois amigos que se encontram para um mergulho em um rio. Experimentam a adolescência como “uma pane em seus itinerários”; sofrem da necessidade urgente de um destino. Enquanto o rapaz da cidade se perde na contemplação da natureza, o outro – o “caipira” – prefere se movimentar. Meditação e agitação são duas maneiras de enfrentar o mundo.
Juntos, os dois amigos se embrenham na mata. Ela tem aparência de um “navio vegetal”. Embarcam: para onde? No coração do bosque, encontram um barco verdadeiro, guiado por um homem silencioso. O caipira salta para o barco; preferindo ficar em terra, o rapaz da cidade entende que foi salvo – mesmo sem saber de quê.
Mais tarde, quando se reencontram, entendem que a divergência de caminhos não os afastou. Olham-se, ainda agora, como em um espelho. Estranho laço, não de semelhanças, mas de ausências: o que falta a um é o que falta ao outro.
Quando o garoto da cidade volta, enfim, para casa, a mãe lhe pergunta: “Quem é?”. A frase que arremata o livro diz tudo: “Ele então encheu o peito e exclamou: – Sou eu!”. Sabe que se livrou da infância, mas não entende como fez isso. Nenhuma fórmula, nenhum método; nenhum roteiro autorizado de crescimento ou de desenvolvimento. De repente, chegou a si – como alguém que, num salto, se ergue de um lago escuro. A água da dor lhe escorre pelo rosto.
Mais abstrato, O nervo da noite traça, também, um percurso que não se deixa ver. Um garoto caminha a esmo, à procura de si. Pelo caminho encontra inscrições contorcidas, “palavras que não queriam dizer nada”. Nenhum sinal, nenhum receituário, nada. Nesse estado fluido, só é reconhecido por seu cão, que não pensa no passado nem no futuro: está confinado ao presente. Enquanto nós, humanos, perseguimos um ideal, um cachorro se contenta com o que é. O presente lhe basta.
Chegam, ele e o cão, a uma casa em ruínas. Faz então a pergunta que ao mesmo tempo o isola e o aproxima de si: se há mais alguém no mundo além dele. Na paisagem imóvel, sente o ímpeto de agir. Intui que ser adulto é entrar na aventura – é mover-se. Sofre, porém, de um desconforto, “como se um nervo-mestre voasse instantâneo pelo seu corpo inteiro”. Não tem certeza dos movimentos que deve fazer; tem apenas o impulso. E faz.
De repente, está em um palco. Vê-se em cena, sob os refletores, mas desconhece o papel que lhe é destinado. O relato termina bruscamente: diante dele, na plateia, rostos se multiplicam, “para a fala que o garoto apenas começa a preparar...” A encenação ainda não começou – estamos sempre nos antecedentes, vivemos sempre aquilo que ainda não é. Ser adulto é, um pouco, acostumar-se a isso.
Noll se recusa a consagrar disciplinas ou a apontar caminhos. Comporta-se como um mestre que, diante do aluno ansioso, em silêncio, se limita a puxar o tapete de certezas que o sustenta. A assinalar o grande vazio que ele habita. As coisas desaparecem, a vista se turva, as palavras escapam. Tudo parece impedir que ele avance. E, no entanto, é nesse abismo que se anda.
José Castello, in Sábados inquietos

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