A adolescência é
uma suspensão do tempo. Um rombo no desenrolar do existir. O sujeito
não é mais a criança que foi, mas ainda não chega a ser o adulto
que será. Está em um vácuo, à deriva, incapaz de fixar imagens e
de estabelecer limites.
É um erro reduzir
a adolescência ao desleixo, à desatenção e ao descaso. Um erro
grosseiro desconsiderar a dor que ela inclui. Tudo o que não faz
João Gilberto Noll nos dois novos livros que acaba de lançar para o
leitor infantojuvenil: Sou eu! e O nervo da noite
(editora Scipione).
Noll não
“adolesce” para escrever para os jovens. Não simula uma
linguagem juvenil, tampouco finge que tem espinhas no rosto. Fala de
seu lugar de homem grisalho e dali, sem abrir mão do que é,
intransigente, escreve de igual para igual.
Não faz
“literatura para jovens”; escreve como sempre escreveu, com fúria
e corpo. Escreve, antes de tudo, para si, e não para os outros. Se
trabalha com personagens incipientes, ainda em formação, isso não
diminui seu ímpeto nem disciplina.
Adolescentes se
atrapalham com as palavras, a fúria que levam no peito transborda as
normas da gramática e não se fixa. Eles podem (e devem) suspeitar
das noções estabelecidas. Habitam um não-lugar, e é de lá desse
intervalo que nos falam. Mesmo quando silenciam, ainda é lá que
estão, em um fosso.
Leio os dois
relatos breves de Noll e penso em dois célebres “romances de
formação”. Primeiro, em O jovem Torless, que Robert Musil
publicou em 1906 – o ano em que meu falecido pai nasceu. Nele
encontro uma frase que captura a dor de crescer: “Torless andava
inquieto, em vão tateava aqui e ali à procura de alguma coisa nova
que lhe pudesse servir de apoio”.
A mesma
insuficiência se repete nas linhas finais de outro romance de
formação, O apanhador no campo de centeio, que J.D. Salinger
publicou em 1951 – ano em que eu mesmo nasci. Ali se lê: “A
gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a
gente começa a sentir saudade de todo mundo”.
Tomo esses dois
romances de nascimento para ler os relatos de Noll. O longo intervalo
de tempo (meio século, e depois mais meio) não os separa. Nem Musil
nem Salinger escreveram seus livros “para jovens”, o que nunca
impediu que eles, até hoje, seduzam jovens de todo o mundo. Noll
também não. Nenhum deles buscou essa monstruosidade que é a
“linguagem juvenil”. A web está cheia de idosos que gaguejam em
internetês; a literatura contemporânea, repleta de jovens que, ao
contrário, prezam a potência da língua. A linguagem nada garante a
respeito de ninguém.
Nem Musil nem
Salinger escreveram seus romances para “explicar” a juventude,
para “ilustrá-la” ou para reduzi-la a “tipos psicológicos”,
ou qualquer outra tolice do gênero. Nenhum deles perseguiu a
“maneira de ser” juvenil ou planejou reduzir sua escrita aos
clichês com que, em geral, a definimos. Basta contrapor as
narrativas de Musil e de Salinger aos dois pequenos relatos de Noll
para entender que eles não se contentam com o conhecido.
Sou eu! é a
história de dois amigos que se encontram para um mergulho em um rio.
Experimentam a adolescência como “uma pane em seus itinerários”;
sofrem da necessidade urgente de um destino. Enquanto o rapaz da
cidade se perde na contemplação da natureza, o outro – o
“caipira” – prefere se movimentar. Meditação e agitação são
duas maneiras de enfrentar o mundo.
Juntos, os dois
amigos se embrenham na mata. Ela tem aparência de um “navio
vegetal”. Embarcam: para onde? No coração do bosque, encontram um
barco verdadeiro, guiado por um homem silencioso. O caipira salta
para o barco; preferindo ficar em terra, o rapaz da cidade entende
que foi salvo – mesmo sem saber de quê.
Mais tarde, quando
se reencontram, entendem que a divergência de caminhos não os
afastou. Olham-se, ainda agora, como em um espelho. Estranho laço,
não de semelhanças, mas de ausências: o que falta a um é o que
falta ao outro.
Quando o garoto da
cidade volta, enfim, para casa, a mãe lhe pergunta: “Quem é?”.
A frase que arremata o livro diz tudo: “Ele então encheu o peito e
exclamou: – Sou eu!”. Sabe que se livrou da infância, mas não
entende como fez isso. Nenhuma fórmula, nenhum método; nenhum
roteiro autorizado de crescimento ou de desenvolvimento. De repente,
chegou a si – como alguém que, num salto, se ergue de um lago
escuro. A água da dor lhe escorre pelo rosto.
Mais abstrato, O
nervo da noite traça, também, um percurso que não se deixa
ver. Um garoto caminha a esmo, à procura de si. Pelo caminho
encontra inscrições contorcidas, “palavras que não queriam dizer
nada”. Nenhum sinal, nenhum receituário, nada. Nesse estado
fluido, só é reconhecido por seu cão, que não pensa no passado
nem no futuro: está confinado ao presente. Enquanto nós, humanos,
perseguimos um ideal, um cachorro se contenta com o que é. O
presente lhe basta.
Chegam, ele e o
cão, a uma casa em ruínas. Faz então a pergunta que ao mesmo tempo
o isola e o aproxima de si: se há mais alguém no mundo além dele.
Na paisagem imóvel, sente o ímpeto de agir. Intui que ser adulto é
entrar na aventura – é mover-se. Sofre, porém, de um desconforto,
“como se um nervo-mestre voasse instantâneo pelo seu corpo
inteiro”. Não tem certeza dos movimentos que deve fazer; tem
apenas o impulso. E faz.
De repente, está
em um palco. Vê-se em cena, sob os refletores, mas desconhece o
papel que lhe é destinado. O relato termina bruscamente: diante
dele, na plateia, rostos se multiplicam, “para a fala que o garoto
apenas começa a preparar...” A encenação ainda não começou –
estamos sempre nos antecedentes, vivemos sempre aquilo que ainda não
é. Ser adulto é, um pouco, acostumar-se a isso.
Noll se recusa a
consagrar disciplinas ou a apontar caminhos. Comporta-se como um
mestre que, diante do aluno ansioso, em silêncio, se limita a puxar
o tapete de certezas que o sustenta. A assinalar o grande vazio que
ele habita. As coisas desaparecem, a vista se turva, as palavras
escapam. Tudo parece impedir que ele avance. E, no entanto, é nesse
abismo que se anda.
José Castello,
in Sábados inquietos
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