Depois da mosca
obstinada, a mais indesejável presença é de uma borboleta negra. É
presságio visível de futura contrariedade, aviso de mágoas
inevitáveis, agouro afastador de alegrias lícitas.
No Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881), Machado de Assis fixa a
superstição: “Digo lá dentro, porque cá fora o que esvoaçou
foi uma borboleta preta, que subitamente penetrou na varanda, e
começou a bater as asas em derredor de D. Eusébia. D. Eusébia deu
um grito, levantou-se, praguejou umas palavras soltas; –
T’esconjuro! Sai, diabo... Virgem Nossa Senhora!... – Não tenha
medo, disse eu, e, tirando o lenço, expeli a borboleta” (capítulo
XXX). No capítulo XXXI, “A borboleta preta”, há toda uma cena.
Brás Cubas não pode suportar a companhia da borboleta negra.
Afugenta-a de todos os modos. Acaba matando-a. Depois, arrepende-se,
concluindo na velha técnica machadiana: “Também por que diabo não
era ela azul?”. Se fosse azul não era núncia de tristezas. Negra
é que é imperdoável. A borboleta preta pode ser a representação,
figuração, encarnação de uma feiticeira, de um espírito mau,
trazendo desgostos, espalhando misérias. Muito comum a borboleta
preta ter o sinônimo de bruxa.
O Dr. João Pessoa
Cavalcanti de Albuquerque (1878-1930), Ministro do Supremo Tribunal
Militar, Governador da Paraíba, não as podia ver. Ademar Vidal, seu
chefe de Polícia, narra um episódio (1930. História da
revolução na Paraíba, São Paulo, 1933): “João Pessoa era
muito supersticioso. Nada lhe passava despercebido. Tudo lhe chamava
a atenção. Certa vez, quase à noite, ele se encontrava em
conferência com um oficial do Exército, que o procurara, quando
nota na parede da sala de visitas uma grande borboleta negra. –
Diabo!... Interrompeu, então, a conversa e, levantando-se, um tanto
ríspido e visivelmente aborrecido, ordenou ao mordomo: – Tanja
dali aquela bruxa!”.
Não tinha
serenidade para tratar de assuntos decisivos diante da borboleta
negra.
O Senador Pedro
Velho d’Albuquerque Maranhão (1856-1907) não suportava a
borboleta preta. Fazia com que a enxotassem logo. E era um homem
vivo, espírito aberto a todos os ventos do espírito.
Em dezembro de
1928, Mário de Andrade (1893-1945), meu hóspede em Natal, estava na
varanda quando uma grande borboleta crepuscular pousou na parede.
Mário não a perseguiu mas disse o nome clássico: – Olhe a
Bruxa!... No Denunciações da Bahia (São Paulo, 1925), há
um documento expressivo sobre essas visitas de feiticeiras,
transformadas em borboletas.
Numa denúncia de
D. Lúcia de Melo em 16 de agosto de 1591, viúva, com 60 anos de
idade, natural da Ilha Graciosa, nos Açores, diz-se: “E
denunciando disse que averá quarenta anos se agasalhava nas suas
casas huã molher prove, casada com hoGodinho carcereiro que era
desta cidade a qual disse a ella denunciante sabendo que ella era
medrosa que avia de fazer um dia hum medo. E hum sabado a noite
estando ella com sua irmãa cosendo a candea veo huma borboleta muito
grande com huns olhos muito grandes e tanto andou ao redor da candea
que hapagou e não apareceo mais.
E despois day a
alguns dias lhe perguntou a ditta molher que já he defunta se vira
ella alguma cousa que lhe fizesse medo e ella denunciante lhe contou
da dita borboleta. Então ella lhe respondeo que ella mesmo era a
borboleta, e ella denunciante lhe pareceo que fallava aquilo por
zombaria porem sabe que ella veo do Reino degradada por feiticeira e
dali por diante ella denunciante, escondia suas crianças por lhes
não embruxar”.
Em Portugal a
borboleta escura, esvoaçante à tarde, é a cousa má .
Identicamente na Espanha e Itália. Na França é a alma de um morto
que faz sua peregrinação ou penitência. Na Rússia é a
desagradável mensageira do infortúnio. Na China é anúncio da
Morte. Pode ser então evitada com orações e sacrifícios. Entre os
orientais é sempre o recadeiro silencioso do outro mundo. A mesma
superstição vive por todo o continente americano. Na Irlanda é
alma que vai para o Purgatório. No Devonshire é o espírito da
criança que morreu sem batizar-se. Pela Ásia Menor havia crença
idêntica. Passaria, naturalmente, à Grécia e desta aos romanos,
direta ou através dos etruscos.
Entre os gregos,
psiké era alma, espírito e também borboleta.
Não era a
borboleta a representação uniforme do espírito que deixara o
corpo, mas uma das mais populares pelo mundo helênico.
Decorrentemente a vulgarização em Roma fora profunda e larga.
Na Pérsia, a
borboleta da tarde ou das primeiras horas noturnas é uma visita dos
mortos saudosos da família terrestre. Assim, no poema “Mireio”,
de Frederico Mistral (Avignon, 1859), e que é a exposição poética
da vida provençal, a jovem Mireio, ao falecer, anuncia que voltará
a ver os entes queridos na forma leve de uma sant-féli, a
falena do crepúsculo.
De acordo com a
tradição greco-romana a cor negra pertencia aos Mortos e aos deuses
subterrâneos, aos mistérios da Terra e do Destino.
Os dias jubilosos,
os eventos felizes, seriam marcados com pedra branca, albo lapillo
notare diem. As datas nefastas mereciam anotações pretas,
riscadas a carvão. O poeta Pérsio, 34-62 do primeiro século
cristão, na quinta
Sátira, alude à tradição: “Marcaste com o giz ou o carvão
o que deve fazer-se e o que deve ser evitado?”. Illa prius
creta, mox haec carbone notasti?
Uma borboleta de
cores claras seria a felicidade, arauto de alegrias, fortuna
assegurada. Justamente o inverno da negra, aliada da Morte e do
Destino, imprevisto e cruel.
Como a borboleta
figura a alma dos mortos, aparecendo preta, é um espírito votado ao
mal, alma cujo corpo não mereceu sepultura e honras fúnebres e
espalha tristezas e pavores entre os vivos.
Luís da Câmara
Cascudo, in Coisas que o povo diz
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