domingo, 8 de julho de 2018

Borboleta agoureira


Depois da mosca obstinada, a mais indesejável presença é de uma borboleta negra. É presságio visível de futura contrariedade, aviso de mágoas inevitáveis, agouro afastador de alegrias lícitas.
No Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Machado de Assis fixa a superstição: “Digo lá dentro, porque cá fora o que esvoaçou foi uma borboleta preta, que subitamente penetrou na varanda, e começou a bater as asas em derredor de D. Eusébia. D. Eusébia deu um grito, levantou-se, praguejou umas palavras soltas; – T’esconjuro! Sai, diabo... Virgem Nossa Senhora!... – Não tenha medo, disse eu, e, tirando o lenço, expeli a borboleta” (capítulo XXX). No capítulo XXXI, “A borboleta preta”, há toda uma cena. Brás Cubas não pode suportar a companhia da borboleta negra. Afugenta-a de todos os modos. Acaba matando-a. Depois, arrepende-se, concluindo na velha técnica machadiana: “Também por que diabo não era ela azul?”. Se fosse azul não era núncia de tristezas. Negra é que é imperdoável. A borboleta preta pode ser a representação, figuração, encarnação de uma feiticeira, de um espírito mau, trazendo desgostos, espalhando misérias. Muito comum a borboleta preta ter o sinônimo de bruxa.
O Dr. João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (1878-1930), Ministro do Supremo Tribunal Militar, Governador da Paraíba, não as podia ver. Ademar Vidal, seu chefe de Polícia, narra um episódio (1930. História da revolução na Paraíba, São Paulo, 1933): “João Pessoa era muito supersticioso. Nada lhe passava despercebido. Tudo lhe chamava a atenção. Certa vez, quase à noite, ele se encontrava em conferência com um oficial do Exército, que o procurara, quando nota na parede da sala de visitas uma grande borboleta negra. – Diabo!... Interrompeu, então, a conversa e, levantando-se, um tanto ríspido e visivelmente aborrecido, ordenou ao mordomo: – Tanja dali aquela bruxa!”.
Não tinha serenidade para tratar de assuntos decisivos diante da borboleta negra.
O Senador Pedro Velho d’Albuquerque Maranhão (1856-1907) não suportava a borboleta preta. Fazia com que a enxotassem logo. E era um homem vivo, espírito aberto a todos os ventos do espírito.
Em dezembro de 1928, Mário de Andrade (1893-1945), meu hóspede em Natal, estava na varanda quando uma grande borboleta crepuscular pousou na parede. Mário não a perseguiu mas disse o nome clássico: – Olhe a Bruxa!... No Denunciações da Bahia (São Paulo, 1925), há um documento expressivo sobre essas visitas de feiticeiras, transformadas em borboletas.
Numa denúncia de D. Lúcia de Melo em 16 de agosto de 1591, viúva, com 60 anos de idade, natural da Ilha Graciosa, nos Açores, diz-se: “E denunciando disse que averá quarenta anos se agasalhava nas suas casas huã molher prove, casada com hoGodinho carcereiro que era desta cidade a qual disse a ella denunciante sabendo que ella era medrosa que avia de fazer um dia hum medo. E hum sabado a noite estando ella com sua irmãa cosendo a candea veo huma borboleta muito grande com huns olhos muito grandes e tanto andou ao redor da candea que hapagou e não apareceo mais.
E despois day a alguns dias lhe perguntou a ditta molher que já he defunta se vira ella alguma cousa que lhe fizesse medo e ella denunciante lhe contou da dita borboleta. Então ella lhe respondeo que ella mesmo era a borboleta, e ella denunciante lhe pareceo que fallava aquilo por zombaria porem sabe que ella veo do Reino degradada por feiticeira e dali por diante ella denunciante, escondia suas crianças por lhes não embruxar”.
Em Portugal a borboleta escura, esvoaçante à tarde, é a cousa má . Identicamente na Espanha e Itália. Na França é a alma de um morto que faz sua peregrinação ou penitência. Na Rússia é a desagradável mensageira do infortúnio. Na China é anúncio da Morte. Pode ser então evitada com orações e sacrifícios. Entre os orientais é sempre o recadeiro silencioso do outro mundo. A mesma superstição vive por todo o continente americano. Na Irlanda é alma que vai para o Purgatório. No Devonshire é o espírito da criança que morreu sem batizar-se. Pela Ásia Menor havia crença idêntica. Passaria, naturalmente, à Grécia e desta aos romanos, direta ou através dos etruscos.
Entre os gregos, psiké era alma, espírito e também borboleta.
Não era a borboleta a representação uniforme do espírito que deixara o corpo, mas uma das mais populares pelo mundo helênico. Decorrentemente a vulgarização em Roma fora profunda e larga.
Na Pérsia, a borboleta da tarde ou das primeiras horas noturnas é uma visita dos mortos saudosos da família terrestre. Assim, no poema “Mireio”, de Frederico Mistral (Avignon, 1859), e que é a exposição poética da vida provençal, a jovem Mireio, ao falecer, anuncia que voltará a ver os entes queridos na forma leve de uma sant-féli, a falena do crepúsculo.
De acordo com a tradição greco-romana a cor negra pertencia aos Mortos e aos deuses subterrâneos, aos mistérios da Terra e do Destino.
Os dias jubilosos, os eventos felizes, seriam marcados com pedra branca, albo lapillo notare diem. As datas nefastas mereciam anotações pretas, riscadas a carvão. O poeta Pérsio, 34-62 do primeiro século cristão, na quinta Sátira, alude à tradição: “Marcaste com o giz ou o carvão o que deve fazer-se e o que deve ser evitado?”. Illa prius creta, mox haec carbone notasti?
Uma borboleta de cores claras seria a felicidade, arauto de alegrias, fortuna assegurada. Justamente o inverno da negra, aliada da Morte e do Destino, imprevisto e cruel.
Como a borboleta figura a alma dos mortos, aparecendo preta, é um espírito votado ao mal, alma cujo corpo não mereceu sepultura e honras fúnebres e espalha tristezas e pavores entre os vivos.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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