quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A“ovelha negra”

Em toda família ilustre e velha existe um membro desajustado e causador de escândalo. É a ovelha negra, black lamb, brebis noir, Schaf Schwarze. No rebanho vive um animal insubmisso e difícil. É a ovelha negra. Num partido político um correligionário desacomodado, exigente, pessimista. É a ovelha negra.
O Sr. Brasil Gérson, escrevendo sobre o ex-futuro Barão de Vila Rica (O Jornal, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1958), lembra à pretensão do sonhado título nobiliárquico “se aproveitou a ovelha negra da nobre família Lima e Silva (do Duque de Caxias), o bon vivant Manuel Luís Lima e Silva”. Essa ovelha negra elaborou uma alta chantagem, arrancando dinheiro a quem deseja ser barão.
Diz-se que semelhantemente na Inglaterra, na Alemanha, em Portugal, na Espanha e nos países de língua francesa corre o brebis noir.
A ovelha, o cordeiro, o anho, símbolos da castidade, inocência, pureza; Cordeiro de Deus, ovelha pascal, Agnus Dei, animais votivos por excelência aos deuses; representações da mansidão, obediência, doçura, em milênios de história religiosa, tomam formas rebeldes e duras na imagem popular, significando a exceção condenada, constituindo a triste prerrogativa da exclusão na linha da bondade normal.
O prejuízo ocorre pela presença da cor negra, votada aos deuses subterrâneos, cor dos abismos, ideia da Noite, o Erebo, o Caos, as Parcas sem piedade, da Morte, a negra Morte, e da negra Miséria. É a cor denunciadora do sofrimento, da crueldade, da paixão interior, desejos materiais, acabrunhantes e esmagadores. Alma negra. Negro destino. Horas negras. Quando Gerard de Nerval fala no soleil noir de la mélancolie refere-se à origem etimológica da Melancolia, a bílis negra, mélas-kholé.
O animal negro era dedicado às forças obscuras da terra, aos deuses telúricos, à grandeza misteriosa da Tellus Mater na Grécia e Roma, Tétis e Gaea, mãe dos seres, inesgotável nutridora dos viventes.
Na Ilíada (III), quando Páris desafia Menelau para um combate singular, terminando desta forma a luta entre gregos e troianos, uma cerimônia preliminar se impõe: o sacrifício de um cordeiro branco ao Sol e de uma ovelha negra à Terra. Mandados por Heitor, dois arautos troianos trouxeram os animais e Agamênon mandou Taltíbios buscar as vítimas, guardadas no bojo dos navios argivos. O próprio Rei Príamo oficiou, degolando as ovelhas com o impiedoso bronze.
Tétis, com Hélios e as Erínias, tinha a missão suprema da vigilância, fazendo observar a santidade dos juramentos e a fiel observância da palavra dada, encarregando-se, com seus companheiros, de fazer castigar no Inferno o feio pecado da violação aos compromissos de honra.
Por isso Páris e Menelau a homenagearam antes do duelo prometendo o cumprimento exato de tudo quanto se pactuara, oferecendo-lhe pela mão do Rei Príamo a ovelha negra, como penhor do trato formal.
Era assim em 1180, antes de Jesus Cristo nascer...
Essencial que a ovelha fosse negra, porque negra seria a cor indispensável para qualquer animal destinado à expulsão dos males, emissário de pecados, cujo tipo mais ilustre é o famoso Azazel, o Bode Expiatório de Israel. O principal era a cor, aussi noir que possible, como reparou Sir James George Frazer.
No rebanho, a ovelha negra é a marcada, de antemão escolhida para o sacrifício, eleita pelo destino da pelagem à imolação fatal, indicada sem remissão para satisfazerem pactos ou pecados alheios. Pode ser ou não ser uma má ovelha mas sua morte a distanciará de todas as companheiras do redil. A ovelha negra era, funcionalmente, a exceção na normalidade da espécie. Excluía-se do comum, do habitual, do rotineiro, do usual. O seu caráter de animal sagrado não afastaria a crença de sua finalidade inapelável.
Esse índice de excepcionalidade, fechado ciclo religioso com o advento do Cristianismo, não mais tendo o sentido de aplicação litúrgica e não desaparecendo do vocabulário vulgar, fixou-se como o tabu dos animais marcados, os entes que têm, notória, uma tacha, um sinal que os diferencia do normal. “Se Deus o marcou, alguma cousa lhe achou!” – ainda diz o povo. O Velho Testamento mandava afastar do altar (Levítico, XXI,18-21) homens e animais (Deuteronômio, XV,21) portadores de anomalias dentro do culto consuetudinário. A ovelha negra era uma exceção como vítima protocolarmente escolhida. Não havendo a função e resistindo à tradição, estaria marcada para o Mal porque para o Bem não mais era possível, dissipado o cerimonial onde era elemento propiciatório.
Ficou a ovelha negra sendo, aos olhos cristãos, uma reminiscência viva da religião condenada do Paganismo, índice oblacional aos deuses terríveis da Terra, que da vida (Homero, Ilíada, III, 245). Destinada à expiação sacra entre gregos e romanos, a ovelha negra encarnou, no mundo cristão, a expressão sacrificial ao pecado, ao erro, à desobediência dos preceitos divinos.
Mesmo depois de 394, quando o Imperador Teodósio mandou fechar o Templo das Vestais em Roma, o derradeiro recanto onde os deuses recebiam oferendas, os costumes prolongaram a existência religiosa antiga entre os camponeses, aldeias e campos, e a ovelha negra , muito depois da oficialização cristã, continuou abatida aos manes defuntos do Olimpo. Talqualmente o Bode e a Cabra, que não tiveram acolhida nas lendas cristãs, a ovelha negra é uma sobrevivência pagã legitimíssima.
Esta é, para mim, não a estória, mas a história da ovelha negra.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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