sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O tiro e o cemitério

Em frente ao cemitério, Estaminet, Letreiro esquisito, — diz consigo o nosso passeador, — mas próprio para despertar a sede! Certamente, o dono desse cabaré sabe apreciar Horácio e os poetas discípulos de Epicuro. Talvez mesmo conheça o refinamento profundo dos antigos egípcios, que não admitiam banquete sem esqueleto, ou outro símbolo qualquer da brevidade da vida.
Entrou, bebeu uma garrafa de cerveja diante dos túmulos e fumou vagarosamente um charuto. Depois, teve a extravagância de ir até ao cemitério, onde o mato era alto e convidativo, e onde reinava um riquíssimo sol.
A luz e o calor eram causticantes. Dir-se-ia que o sol embriagado espojava-se todo sobre um tapete de flores magníficas fertilizadas pela destruição. Um imenso burburinho de vida, — a vida dos infinitamente pequenos, — enchia o espaço cortado a intervalos regulares pela crepitação dos disparos de um tiro vizinho, que ressoavam como o espocar das garrafas de champagne no gorjeio de uma sinfonia em surdina.
Então, sob o sol que lhe esquentava o cérebro e na atmosfera dos ardentes perfumes da Morte, ouviu uma voz cochichar debaixo do túmulo em que se sentara. Essa voz dizia: — Malditos sejam vossos alvos e vossas carabinas, oh vivos turbulentos, que tão pouco vos importais com os defuntos e o seu divino repouso! Malditas sejam as vossas ambições, malditos os vossos planos, oh mortais impacientes, que vindes aprender a arte de matar junto ao santuário da Morte! Se soubésseis como é fácil ganhar o prêmio, como é fácil alcançar o fim, e como tudo é nada, exceto a Morte, não vos fatigaríeis tanto, oh laboriosos viventes, e perturbaríeis menos o sono dos que há tanto tempo puseram no Fim o único fim verdadeiro da detestável vida!
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

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