Com
a palavra, o povo:
— Isso
só pode ser arte de Satanás.
—
Agora, essa. Arte de Satanás. Arte de
vagabundo. Arte de moleque descarado.
— Eu
vi. Juro que eu vi. Uma bola grandona, que chegava a me entontecer.
Eu estava chegando da roça e fiquei parado, sem conseguir ir para a
frente nem para trás. Pensei que foi o sol que tinha caído. Depois
a bola sumiu de repente. Quase desmaiei. Pensei até que tinha
perdido a fala. Que susto. Acreditem se quiser, eu vi. E sou capaz de
jurar que era o tal de disco voador.
— Por
que você não entrou nesse tal de disco voador e não voou com eles
para São Paulo? Você não vive dizendo que quer ir para São Paulo?
— Vocês
não acreditam. Não tem jeito.
—
Chegou um sujeito aí dizendo que viu um
negócio muito esquisito na estrada. Um carro que vinha a toda
velocidade, com os faróis acesos, e quando chegava perto dele sumia.
—
Olhaí, seu delegado. Eles ainda estão
por perto. As balas do seu fuzil pegam em carro encantado?
— Se
continuarem com essa mangação, boto todo mundo na cadeia — o
delegado se enfezava. Estava a ponto de explodir.
— Vai
botar as pessoas erradas, delegado.
— Em
vez dessa fuxicaria toda, por que é que a gente não toma uma
providência?
— Tome
você, já que está tão interessado — disse o delegado. — Tem o
meu consentimento.
— Ora,
delegado, quem é a autoridade? — Como é que o delegado pode pegar
um disco voador?
—
Mandando buscar outro disco voador. Na
capital deve ter dúzias deles.
— Quem
foi que veio com essa conversa besta de disco voador?
— Eu.
Por quê?
— Ah,
foi você? Ainda bem. Assim eu acredito.
— Pode
acreditar mesmo.
—
Acredito, já disse.
— Vocês
não acreditam porque são uns ignorantes. Nunca ouviram A Voz do
Brasil. Mas eu ouço. Todas as noites. E fico sabendo de tudo o
que existe. E disco voador existe.
— Sabe
o que eu acho — cortou um que queria paz —, eu acho que se
Humberto de Tote Vieira tivesse aqui nada disso estava acontecendo. A
gente já tinha dado um jeito nesses bandidos.
— E
quem é esse tal de Humberto que eu não me lembro?
— É
um filho daqui, que mora lá pelo Sul. Trabalha na televisão. É ele
quem entrevista Mao Tsé-tung, toda vez que Mao Tsé-tung vem passear
em Copacabana.
— E
quem é esse diabo desse Mau-não-sei-quê? Oxe!
— Tá
vendo? Aquele ali é quem tem razão. Vocês não sabem nada porque
não ouvem A Voz do Brasil.
— E
o que é que esse Humberto ia fazer?
— Ia
dar a notícia nas rádios e na televisão e aí as polícias, mais
para adiante, iam barrar os paulistas. Vocês não sabem que as
estradas têm barreiras? É nas barreiras que se pega os fugidos da
polícia.
— É
verdade isso, delegado?
Ele
não respondeu. Queria dar um fim ao caso, mas não sabia de que
jeito. O povo daqui é assim: quando agarra num assunto, vai com ele
até o resto da vida. Neste lugar nunca aconteceu nada que desse
trabalho à polícia. Aconteceu a vinda destes três forasteiros.
Para a desgraça do delegado. O povo reclama, pede justiça. O povo
põe a culpa nele. O delegado está a ponto de ficar louco. Ameaça
se retirar. Queria sumir das vistas desta gente. Não permitem a sua
saída. Sempre senhor de seus atos, o delegado agora é um escravo de
todos. Pensa: “Que droga. Por causa de três paulistas desocupados
e de um menino aleijado. Uma tempestade num copo d’água.”
— Não
vá já, não, doutor. Queremos lhe ajudar.
—
Ajudar em quê? Agradeço muito a boa
intenção, mas não estou precisando de ajuda.
— O
caso, delegado, é que a mãe do menino tá com a bola frouxa. Ela
diz que vai amanhã na capital. Vai dar queixa do senhor ao
Governador. E ela vai mesmo. Já conseguiu até o dinheiro emprestado
para fazer a viagem.
— Deixa
ela ir. O que é que eu posso fazer?
— Pode
prender essa velha, não pode? Pode prender até por desacato à
autoridade. Ela não lhe xingou na cara de todo mundo? Amarre ela na
cadeia que ela não vai.
O
conselho era malicioso e o delegado sabia disso. Agora preparavam-lhe
uma armadilha.
— Isso
é um absurdo — interveio um dos homens, disposto a tudo. — Os
moleques à solta e a mãe do menino na cadeia? O povo vai se
revoltar.
— Já
estou revoltado — disse o do disco voador. — Essa conversa toda
já está me deixando revoltado. Quanto mais a gente fala, mais eles
fogem. E ninguém faz nada.
— Quem
foi que falou em Humberto de Tote Vieira?
— Eu.
— Então
por que você não passa um telegrama pra ele? Talvez já resolvesse.
O negócio da notícia na televisão.
—
Telegrama? Tá sonhando. Só se passa
telegrama daqui a 15 léguas. Neste buraco até carta só sai de oito
em oito dias. Não me diga que você não sabe disso.
— Eu
estava apenas dando uma ideia.
— Com
ideias assim, sabe o que você deve fazer?
— Calma
lá, calma lá — disse o delegado. — O primeiro que abrir a boca
sobre este assunto vai pra cadeia. Estou falando sério. Meto todo
mundo na cadeia. E quem me desrespeitar...
— Diga,
delegado: leva bala. Quem me desrespeitar, leva bala. Diga isso da
sua própria boca.
— Isso
mesmo. Quem me desrespeitar, leva bala. Passo fogo em todo mundo. —
O delegado repetiu a ameaça umas três vezes, talvez para ter
certeza absoluta de que era o que lhe restava fazer. E todos viram a
praça em guerra, a velha praça esfarrapada, pobre e quieta que
dormitava há mais de um século, porque nasceu sossegada e parecia
que viveria sossegada até o fim do mundo. Ia ser um flagelo. Há
poucas horas ninguém haveria de pensar numa batalha por aqui, e esta
batalha estava por arrebentar, para nossa própria surpresa. A cena
era confusa, como num sonho. De um lado o delegado e seus dois
soldados, atirando a esmo. De outro lado homens, mulheres e crianças,
com seus cachorros, pedras, paus, estilingues e espingardas de caçar
codornas. O delegado e os dois soldados eram pouco, mas iam dar muito
trabalho. Suas armas eram mais perigosas, todos sabiam. Mas não
houve guerra, não foi desta vez que o lugar arrebentou. E não houve
por uma razão muito simples: o delegado se retirou, sem dar maiores
satisfações. Provavelmente ia para a cama. Ia contar carneirinhos
até o sol raiar.
Antônio
Torres, in Meninos, eu conto
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