Na
literatura, o que importa está sempre ausente. Um romance não é
uma tela que aprisiona o mundo, prende-o em uma moldura e depois o
apresenta (como um criminoso algemado) ao leitor. A literatura está,
mais, no esforço de perseguição do que na captura e exposição do
que se persegue. Não chega a ser o que está dentro de um livro, é
mais a luta que um livro esconde.
Essas
ideias, que desarranjam nossa noção serena de literatura, se
insinuam durante a leitura de “Visita à oficina”, ensaio do
escritor português José Cardoso Pires (1925-1998), que agora serve
de posfácio à edição comemorativa dos quarenta anos de O
delfim (Bertrand Brasil, prefácio de Teresa Cristina Cerdeira).
No texto (publicado originalmente em 1977 na coletânea de ensaios E
agora, José?), Cardoso Pires se atreve a uma experiência de que
os escritores, em geral, se esquivam: a crítica feroz de si.
Contudo, mesmo o escritor que decide escrever um ensaio, nos mostra
Teresa Cristina, continua a ser um ficcionista. “Visita à oficina”
é, de certo modo, uma segunda ficção a propósito de uma primeira
ficção.
O
crítico Cardoso Pires faz de tudo para encontrar traços perduráveis
em seu protagonista, Tomás Manuel, conhecido como O Engenheiro.
Persegue-o com a tenacidade de um furão – um desses mamíferos
bisbilhoteiros que, obstinados, não se cansam de cavucar a terra.
Apesar do esforço, ele nada encontra: nenhuma imagem fixa, nenhuma
psicologia, rastro algum de uma “identidade”. Fica com sua
procura. Busca que, enfim, é seu romance.
Na
aparência, O delfim é um romance policial. Sempre julgamos
que, ao fim de uma busca, se formos aplicados e inteligentes e
esforçados, chegaremos a um tesouro ou, ao menos, se revelará o
nome de um criminoso. Em resumo: o esforço seria a garantia de um
final feliz. Mesmo que infeliz, teríamos nas mãos um desses fechos
polidos, que vêm restabelecer a serenidade e a boa digestão do
leitor.
De
certa forma, é o que O delfim, desde as primeiras páginas,
promete. De que trata o livro? Um escritor viaja ao antigo condado da
Gafeira, em Portugal, para uma temporada de caça. Lá, ele se
relaciona com os últimos descendentes da família Palma Bravo: Tomás
Manuel, sua mulher Maria das Mercês e o servo Domingos. Seduzido
pela atmosfera de província, ele toma notas para um romance. Quando
O delfim começa, um ano depois, o escritor está de volta ao
condado, disposto a repassar as primeiras anotações. Em um ano,
porém, a história se revirou. Maria das Mercês e Domingos estão
mortos – foram assassinados. O patrão, Tomás Manuel, desapareceu
– fato que o transforma em um suspeito. Há, agora, um mistério a
investigar, o que empurra o escritor e caçador para a aventura da
narrativa policial.
Ele
se vê preso, então, à “curiosidade, a terrível curiosidade que
leva o ouvinte de lendas e de milagres a aflorar os lugares
proibidos”. A esperança de uma solução o agita. Tomás Coelho se
torna, a partir daí, a figura central de um sistema de motivos e de
suspeitas, que pede um desfecho. Mas a literatura não fornece
soluções. Instrumento de duas pontas, ela arrebenta ali mesmo onde
costura. O delfim está longe de ser um romance policial. É tudo
menos isso. O mote detetivesco é só uma desculpa que permite a
Cardoso Pires avançar sobre o que realmente o interessa: o ritmo
rebelde e desconexo com que a vida se move.
Pode
a literatura dar conta da vida? Não, não pode. E nem é para isso
que ela existe. O escritor, mesmo um escritor com alma de furão,
escreve para lutar, e não para conferir fecho ou diagnóstico.
Escreve como alguém que sopra um fogo, não para apagá-lo (o que
seria o mesmo que “solucioná-lo”), mas, sim, para atiçá-lo.
José
Cardoso Pires gostava de repetir uma frase do poeta americano William
Carlos Williams: “Sem ser católico, ouço os sinos”. A frase
separa a sensibilidade da crença. Lamentava-se: “Só muito de raro
em raro consigo descobrir nos sinos qualquer pureza”. Os sinos, que
nos enganam com sua limpidez, anunciam não um encontro, mas um
desencontro. Ali onde a literatura (os sinos) ressoa, nada se fecha.
Inevitável
lembrar de Por quem os sinos dobram, a novela de Ernest
Hemingway, escritor que Cardoso Pires sempre desejou ser. Ele falava
da presença decisiva de Anton Tchecov e de Edgar Allan Poe em sua
formação. Mas nenhuma delas, dizia, superava a influência de Ernst
Hemingway. “Com ele aprendi que a separação entre o jornalismo e
a literatura só convém aos jornalistas que escrevem mal.” Para
Cardoso Pires, o escritor, como o repórter, é um perseguidor. Mas,
enquanto o repórter precisa encontrar, no fim de sua jornada, um
objeto que lhe sirva de matéria, o escritor deve persistir na busca,
contentar-se com ela.
O
delfim nos mostra que, quanto mais o escritor busca, mais seu
objeto, em vez de clarear, se desfigura. As várias investidas sobre
o real, em vez de tornarem o mundo mais nítido, o tornam mais
complexo. Cardoso Pires admirava a pintura de Henri Matisse, um
artista que dizia não pintar as coisas, “mas as relações entre
as coisas”. Transposta para a escrita, essa fórmula o conduziu a
uma literatura que, mais que reter o mundo, pretende alvoroçá-lo.
Fixar o movimento: eis o ideal impossível dos escritores. Pois, uma
vez fixado, o movimento se estanca, deixa de se mover. Do mesmo modo,
uma vez capturado pela bala assassina, um furão morre. Sabedoria dos
caçadores.
Um
de seus maiores amigos, António Lobo Antunes gosta de lembrar os
passeios noturnos que faziam juntos. A peregrinação (caça) de
taberna em taberna, anestesiados pela mesma mistura de bebida e
cansaço. Amálgama que levava Lobo Antunes a cambalear, enquanto o
amigo, ao contrário, “flutuava à minha volta como um anjo de
óculos”. A figura etérea do anjo não é casual. Refere-se a um
eterno flutuar, que nunca pousa. Falava de um sobrevoo. “Cada livro
é uma tentativa de me identificar mais comigo próprio”, dizia
Cardoso Pires. Tentativas que, por nunca chegarem a um bom termo,
formam a única imagem, inacessível, que dele nos restou.
José
Castello, in Sábados inquietos
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