A
moça é daquelas que dão duro no trabalho, como chefe de órgão
importante, e depois vão para casa cuidar de si mesmas. Chamemo-la
Andreia. Vive só, o que é mais inteligente do que viver com um
apêndice importuno. Sem empregada, tendo apenas faxineira, cuida
pessoalmente de sua dieta-da-lua, de suas roupas, de suas contas, de
sua música, de seu tudo. E ao apagar a luz, finda a jornada cheia de
responsabilidades para com a pátria e a vida, seu sono é o da
pureza de alma. Que bom viver só, sem a presença do Outro, o
terrível Outro, que é sempre (ou quase) um Eu rabugento ou
chatíssimo!
Semana
passada, Andreia acordou disposta como sempre a lutar, e foi tomar
seu chazinho-de-jasmim. A mesa, arranjada de véspera, era primor de
ordem e asseio, de que a moça faz questão: um de seus traços
pessoais. E que viu Andreia, além da xícara, dos apetrechos, da
latinha de chá, da toalha, dos finos biscoitos? Viu que alguém
passara por ali e tomara chá antes dela!
Que
tomara chá, propriamente, não, mas que usara a mesa e deixara
sinais, era evidente. As coisas estavam desarrumadas, a colher fora
de lugar, havia rugas na toalha, um biscoito fora trincado, e até,
para horror de Andreia, pequena e estranha substância se depositara
sobre a mesa!
A
moça correu às portas, a social e a de serviço, e achou-as
trancadas como as deixara. Pela varanda fechada não poderia ter
entrado ninguém. Que ser misterioso conspurcara a sua mesa? Mal
indagou isto a si mesma, viu uma forma veloz deslizar pelo tapete e
esconder-se atrás de uma poltrona. E essa coisa chispante, branco
acinzentada, era um camundongo. Ir correndo à copa, brandir uma
vassoura e atacar o bichinho foi obra de um momento. Em vão, é
claro. Não há camundongo que se deixe pegar por moça nervosa e de
má pontaria.
O
tempo de Andreia era curto, não dava para empreender caçada em
regra, com o auxílio do gato do porteiro; ela deixou o apartamento e
foi muito abalada para o serviço. De lá telefonou para a Comlurb,
pedindo que fossem pegar o rato em sua casa. Marcada a visita para o
dia seguinte, Andreia faltou ao trabalho para atender ao matador de
ratos, que apareceu com a sua instrumentália, viu, não achou sinal
de rato nenhum e pediu maiores esclarecimentos:
— A
senhora pode me dizer o tamanho dele?
— Vi
só um momentinho, acho que tem uns noventa milímetros de
comprimento e outros tantos de rabo.
O
homem sorriu:
— Ah,
então o que a senhora viu foi um camundongo.
— Que
diferença faz? Ele rói da mesma maneira e eu me sinto ameaçada.
— A
diferença é que nós só cuidamos de ratos, desses ratões ou
ratazanas, que medem vinte centímetros de comprimento e pouco menos
de rabo. Esse ratinho da senhora é café-pequeno pra nós. Já
experimentou ratoeira?
— O
porteiro me emprestou uma, que até agora não pegou nada.
— Vai
ver que o danadinho sentiu cheiro de ratoeira usada, que não engana,
e não foi besta de arriscar. Eles têm um faro! Compre uma ratoeira
no bazar.
— É
o que vou fazer já. E se ela não pegar? Se o ratinho for bastante
inteligente para perceber que aquilo é de morte?
— Bem,
nunca se pode garantir nada a respeito do comportamento dos
camundongos. Eu mesmo já lutei contra eles lá em casa, e pegava uns
três por dia. Mas sabe o que aconteceu? Ficava sempre uma fêmea
para parir cinco vezes por ano uma média de oito a dez filhotes de
cada vez.
— O
quê? — Andreia teve o maior arregalo de olhos de sua vida. — E
eu vou ter em casa essa cambada toda infernizando a minha vida?
—
Calma. Não estou dizendo que o seu
camundongo…
— Meu,
não!
— Que
o camundongo desta casa se multiplique. Se é um só, como é que vai
se multiplicar? Procure manter a serenidade, nem eu vim aqui para
assustar mais a senhora. Vim em missão de paz.
— E
então?
—
Então, acho que tenho uma solução para
o seu caso.
— Diga,
diga.
— Tem
um preparado aí que dizem que é um barato. Eu não experimentei,
mas um amigo meu afiançou que é tiro e queda. O nome é Catitoline.
Não sabe que o povo chama camundongo de catito? Pois é.
— Ah,
obrigada pela indicação! Vou rezar para que esse tal de Catitoline
dê certo. Bem, me esqueci de que não rezo, mas Deus é grande. O
que eu não posso é viver em companhia de um ratinho, e muito menos
se ele for de família numerosa.
Pelo
telefone, Andreia comprou imediatamente o raticida.
— Agora
vamos à luta — exclamou com voz de combate.
Pegou
da bula, que era vasta, alastrada em duas páginas de tipo miúdo,
com ilustrações. Sem tempo a perder, procurou o essencial; dosagem,
e como preparar a isca. Espalhou pela casa, do quarto de dormir até
a área de serviço, as pequenas porções de pó róseo impregnadas
em pedacinhos de folhas de chicória — ah, esperança! ah,
incerteza! porque Andreia confiava e descria ao mesmo tempo. Sua
cabeça não sossegava, com o pensamento de já não morar só, de
ter uma companhia que ela não convidara nem desejava — a mísera,
assustadora, incontrolável companhia de um ratinho mais ou menos
invisível.
Suas
noites eram povoadas de ratinhos que bailavam sobre a escova de
dentes ou se escondiam no sutiã. Despencavam-se do lustre, em
brincadeira perversa, indo cair dentro dos chinelos. E até no
chuveiro eles se mostravam, envolvidos em água. Andreia tinha medo
de dormir; passou a ter pesadelos acordada. Um dia, abriu o livro de
Manuel Bandeira, poeta de sua devoção, e um camundongo saltou do
interior, entre duas folhas. Será que Catitoline resolve?
Andreia
lera, afobada, que era preciso insistir de quatro a seis dias na
aplicação; se fosse o caso, até dez. Pela manhã, passava em
revista as porções, que diminuíam de tamanho. O ratinho cevava-se.
Andreia, ao renovar as iscas, chegou a pensar que, no fundo, estava
criando e alimentando um rato, em vez de exterminá-lo. Era preciso
ter paciência e persistência. No dia em que nenhuma folha de
chicória aparecesse mexida, a guerra estaria ganha.
O
ratinho continuava circulando pelo apartamento, circulando e comendo.
Foram dias penosos de incerteza, quando quem menos ou nada comia era
Andreia, receosa de que, depois da refeição de Catitoline, o danado
fosse degustar sobremesa de queijo, na mesa de jantar. Todos os
lugares, móveis, vasilhas e utensílios da casa estavam sob
suspeita. Poluídos? Não poluídos? Quem sabe! Na dúvida, tocava o
mínimo possível nos objetos. Com a ponta dos dedos.
As
amigas, a quem Andreia contara o problema, indagavam da evolução
dos acontecimentos. Aconselhavam dobrar, triplicar a dose de
Catitoline. Fazer novena para santa Ludvígia, protetora contra
animais daninhos. Recorrer à macumba do Morro dos Cabritos.
Contratar um segurança que permanecesse indormido no interior do
apartamento. Apelar para o presidente Figueiredo, por que não? Tão
fértil, a imaginação das pessoas!
— Como
é: o ratão está engordando com as mordomias? — telefonou um
amigo, e Andreia desligou, indignada. É brincadeira que se faça?
Pouco
a pouco, as iscas foram se mostrando intactas. Assim ficaram durante
cinco dias. Tempo bastante para Andreia confiar no veredicto das
amigas:
— Esse,
nunca mais. Pode crer.
Nenhuma
notícia do ratinho. Procura-que-procura em toda parte, esconderijo,
ângulo, nada. Como podia desaparecer assim? Por que o cadáver não
ficara exposto, certificante? Afinal, um rato é um rato, não uma
abstração.
De
qualquer maneira, Andreia dedicou um pensamento de gratidão ao
Catitoline, veneno milagroso e sutil, lento e misterioso. Leu com
aprazimento a bula, antes percorrida de relance. A curiosidade a
incitava: Por que motivo o cadáver desaparecera?
A
bula informou-lhe que o ratinho não apodrecia nem cheirava mal
porque se recolhera ao lugar de origem e aí quedara morto,
mumificado. É das excelências de Catitoline: fulmina e impede o mau
cheiro.
— Mas
que é que ele tem de especial para fazer a mumificação? Que
substância gostosa é essa, que mantém a gula do ratinho durante
tantos dias, sem provocar-lhe cólicas e até o incitando a comer
mais?
A
bula, copiosa e ilustrada, respondeu, em exatas palavras, que o
elemento químico responsável pela morte e pela conversão do
camundongo em múmia inodora era segredo de fabricação, protegido
pelas leis de propriedade industrial, mantido nos últimos quinze
anos pela multinacional proprietária da fórmula, bolada por
eminente cientista holandês, especializado em raticídio. Quanto ao
sabor da comida, a bula riu e não escondeu:
— Ora,
o ratinho não é levado pela fome, mas pelo desejo sexual. A
substância empregada proporciona-lhe grande prazer e até mesmo
orgasmo. O camundongo morre feliz, depois de uma temporada erótica
da maior intensidade. Não é o alimento que move os bichos e tantos
seres humanos; é o sexo.
—
Vivendo e aprendendo — concluiu
Andreia, voltando à paz e à ventura de morar sozinha. O que —
acrescente-se — não é sinônimo de viver sozinha.
Carlos
Drummond de Andrade, in Boca de luar
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