quarta-feira, 29 de junho de 2016

Os olhos fechados do diabo do advogado

O doutor pousou a paciência na palma da mão. O tempo se compridava, a consulta já excedia seu próprio valor. Voltou a olhar a mulher sentada à sua frente. Tinha deixado de lhe ouvir desde há minutos. Sua distração se concentrara nas pernas da dona que cruzavam e contracruzavam. Havia ali demasiada carne para pouco tecido. Resignado, o advogado voltou aos deveres da escuta. A mulher avançava as razões de ter deixado seu esposo.
Meu marido ressona.
Ora, isso é um motivo? Há mais gente a ressonar do que a dormir.
Sim, senhor doutor. Mas este meu marido ressona ao contrário.
Ao contrário?
Sim, ressona só quando está acordado.
O doutor pensou: isto é mulher de fé e vinagre. E pediu mais matéria, mais fundamento. Mas a cliente peregrinava por discurso tão inútil como óculo em mão de cego:
O senhor olhe bem para mim. Acha que já caduquei? Não, não precisa dizer nada. A resposta está à vista nos seus olhos, doutor. Mas esse meu marido é uma alma pernada. Se o visse: altivo, empertigordo. Mas só da gola para cima. Porque, nos pisos inferiores, da cintura para...
Desculpe, minha senhora. Mas esses detalhes...
Detalhes? Mas são esses detalhes que fazem filhos! O senhor me desculpe mas o senhor nasceu foi de um detalhe, doutor... Intimidade não me deixa intimidada. O lixo começa é no nosso nariz. Mas voltando ao marido, antes que esfrie. Se soubesse como ele era namoradiço. Não havia noite, doutor. Como é que ele ficou-se assim? Eu já pensei, doutor. Sabe o que ele diz: que eu não lhe dou vontade porque passo a vida a chorar. Pode ser essa uma razão? Sim, é verdade, eu gosto muito de chorar. Não posso ficar um dia sem me derramar. Mas, para ele, para o meu ex-antigo-marido isso nunca foi motivo de desistência. Ele antes me subia, sem escorregar nas minhas lágrimas. Só agora é que não visita meu corpo. E sabe por quê? Sabe por que ele ficou assim? Foi por ele me beijar com olhos fechados. Sim, é verdade, ele me beijava com os olhos todos fechados. O doutor, me perdoe, mas como é que o senhor beija?
Como é que eu beijo? Que disparate…
Não diga que o senhor não beija, doutor? Se não quiser não responda. Mas o senhor bem sabe: um homem não pode nunca beijar de olhos fechados...
Eu sei o que se diz sobre isso, que se perde destino e alma, essas coisas... Mas eu não me preocupo com isso. Aliás, não fecho os olhos.
Nem nunca feche, doutor. Se não perde caminho de regresso.
O doutor jurista voltou a fixar a elegância com que a senhora se cruzava no respectivo o seu assento. Ela, de repente, se calou. Ficou assim, em pausa. Depois, chegou a cadeira dela mais para a frente e murmurou:
Vá, doutor: não comece a encobrir o meu marido. Não faça de diabo do advogado...
É ao contrário, minha senhora.
Ao contrário, vamos ver depois. Sabe doutor, tenho estado a olhar os seus olhos. O senhor costuma chorar?
Eu? Chorar?
Sim, sem vergonha. Confesse.
E, dizendo isto, ela saiu da sua cadeira e se sentou na secretária. Seus joelhos tocavam o doutor responsável. A mulher passou os dedos pelo rosto dele e disse:
Aposto que o senhor não sabe chorar direito. Chorar tem as suas técnicas, doutor. Eu tenho muita certeza neste assunto. Me formei em tristezas, sou cursada. A dor o que é? A dor é uma estrada: você anda por ela, no adiante da sua lonjura, para chegar a um outro lado. E esse lado é uma parte de nós que não conhecemos. Eu, por exemplo, já viajei muito dentro de mim...
A mulher descia agora da secretária e se anichou no colo do advogado. O homem, equivocado, se deixou. Parecia que ele nela se abandonava. A mulher prosseguia seus avanços:
Eu lhe vou dar aulas de choro. Não faça essa cara. Homem chora, sim. Só que tem uma própria maneira de fazer. Vou-lhe ensinar os procedimentos do choro.
Mas eu, minha senhora, com a franqueza...
Com a franqueza, com a fraqueza. Me escute, aprenda. Não há que ter vergonha. Primeiro, faz o seguinte: o doutor junta no peito não aquela imediata e justificada tristeza. Faz muito mal chorar uma tristeza de cada vez. Em cada momento a gente tem que chorar todas as tristezas de todas as vidas. É preciso chamar as antigas amarguras, juntar todas aflições. Faz conta construímos um dique, grande, para estancar as águas. Aqui, está a ver? Deixe-me pôr a mão no seu peito. Vá. Desabotoe a camisa, doutor. Sim, aqui. É aqui que vão inchar os afluentes e rios até começar uma inundação. De repente, o senhor vai ver: tudo se rebenta e águas jorram. O choro é uma paixão: a gente acaba e estamos cansados, como os corpos que fizeram amor.
O respeitoso legislador já estava mais inclinado que um poente. A gravata dançava, desasteada, na mão da cliente. Um sapato dela, inexplicável, se refastelava em cima do computador. A senhora ajustou horizontalidade sobre o jurista.
Me diga, doutor: o senhor quer chorar comigo agora? Não, não tenha receio. É que há um segundo mandamento na ciência da tristeza. Nunca se deve chorar sozinho. Isso faz muito mal, dá muito prejuízo para a tristeza. Chorar isolado chama os maus espíritos. Se quiser abater uma lágrima então chore juntinho com alguém, os dois em afinamento.
Ela puxou o rosto dele de encontro ao seu entreaberto decote. A si mesma ela mais se desabotoou. Nos seios, ela sentiu o úmido dos lábios dele. Mais que isso, ela sentiu as lágrimas, volumosas aguinhas que lhe desciam. Eram tão gordas que lhe formigaram pelo corpo, cocegosas. E os dois foram cumprindo o código das leis que mandam que todo o corpo seja um copo: inclinado se vaza sobre o chão. Aqueles dois, se morressem naquele instante, não seria em imoral mas imortal posição.
E foi aquele quadro que viu, em abismada surpresa, a secretária do doutor, ao abrir a porta do consultório. O jurista e sua cliente, em braços mútuos, ambos em derramados prantos. Por que choravam dessa inundada maneira, a secretária não entendeu. O mais a chocou foi ver como o doutor consumava seus beijos: de olhos fechados, mais fechados que a porta que ela empurrou para se separar do espanto.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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