animais
de carga sobre os dias
percorrendo
a cidade até aos bordos
carregam
a morte sobre os ombros
Paula
Tavares, O lago da lua
Vi
tanta gente curvada no cais... Tanta gente. Ocorreu-me, da minha
varanda, novamente a ideia de os aeroportos, os portos e os cais
serem, mais do que lugares de partida, lugares de desencontro. Um
toque íntimo de destinos cruzados mas, no instante seguinte, a
infinita distanciação das pessoas. Vi, nessa manhã, tanta gente
curvada no cais. O dia começava, a manhã estava clara e fresca na
sua inauguração. Mesmo assim toda aquela gente curvada. Crianças,
sim, crianças. Os velhos sentados — conversando, olhando,
esperando. Mas as pessoas que se moviam estavam curvadas. A vida é
pesada.
Andavam
de um para o outro lado, os olhos postos num navio ou no horizonte.
As crianças — não percebo — não brincavam. Ou brincavam de ser
adultos curvados: quietos, amolecidos de ânimos e brincadeiras,
sonolentos de olhos abertos e o horizonte neles. As crianças
moviam-se, vi da minha varanda, curvadas também. O céu estava para
cair? Não raro o céu está quase a cair, e começa assim o peso.
Uma multidão espessa de corpos movendo-se num limite aparentemente
definido, cercados de mar, de pedra e de barcos, e todos os corpos se
moviam de lenta maneira — latejante. Aquilo é que era uma tanta
gente! Quis experimentar o peso do vento. Cuspi. Era um vento
semelhante ao de outros dias, de outras manhãs. Espreitei o céu,
aclareado. Tanta gente curvada. Tanta gente no cais. Fumo aqui e ali,
onde se preparava, certamente, algum mata-bicho. Os velhos, os velhos
gostam de mata-bichar. Mas e as crianças que gostam de brincar, por
que corriam assim, agachantes? O peso, o peso, queria entender,
discernir que peso era aquele. Nunca tinha visto tanta gente no cais,
e nunca tinha visto tanta gente curvada no mesmo local, da mesma
maneira, sem fronteira de idade, àquela hora do dia, àquela lenta
movimentação. Passa o pássaro. Do meu mata-bicho, remeto-lhe umas
boas migalhas. Pão, queijo. Quero que ele me entenda, que vá ao
cais e me traga noticiosas confirmações, verídicas, factuais. De
peso, pois. Que lhe esperaria aqui a recompensa, mais migalhas, ou
quem sabe, um prato inteiro de milho. Olho o pássaro,
suplicantementesperativo. Da minha varanda ao cais é já uma grande
légua para esta minha perna. Olho o pássaro. O pássaro olha o
cais. O cais cheio de gente. O pássaro-ponte entre o cais, a gente
curvada e eu. O fim do meu mata-bicho sem conseguir conceber o porquê
de tanta gente curvada no cais. Passou o pássaro, outra vez. Já não
o vejo. Não distingo a mancha escura ao longe: será catarata, será
pássaro? Mas a mancha cinzenta, a maré humana à beira do cais,
mexe-se fervilhante. Têm todos a mesma altura quando estão
curvados, ocorre-me. Há gente sentada, ao pé do fumo, aquecendo o
olhar, o estômago talvez. E as mãos. As mãos junto à cara daquela
gente curvada faz-me crer que choram. Tanto peso só podia originar
isso.
O
pássaro!, apetecia-me gritar para o pássaro. Ele em seus voos, ele
e mais alguns colegas devolveriam a eretidão àquelas gentes. Três,
quatro mil pássaros, passando rasantes por aquela gente curvada,
passando por eles mais de uma vez, batendo as asas o mais
estrondosamente possível, respingando água, ou merda, por que não?,
respingando penas, reacordando o olhar das crianças, perturbando o
mata-bicho dos velhos, requisitando a atenção dos adultos, soprando
aos olhos dos recém-nascidos e crianças de colo, instigando a
revolução provisória entre as cabras, o alvoroço entre os macacos
nas jaulas, o latido sexual entre as cadelas, um pássaro ou dois
pousando no enorme relógio para uma fotografia, quinhentos
procurando o navio mais próximo, um deles sentando-se aqui ao pé de
mim e do milho para fazer-me o relato, e o cais, o cais invertido de
cores e movimentações, os sons alterados, a marginal estonteante,
as palmeiras chilreando, o mar desperto, tudo para que o pássaro,
gritado por mim, ou por outro, convocasse, sei lá, três, quatro mil
pássaros que rompessem abruptamente com a curvatura daquela gente
que, cega e desorientada, com o olhar no chão, procura vestígios de
uma nova esperança.
Ondjaki,
in E se amanhã o medo
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