domingo, 3 de janeiro de 2016

O pássaro do cais

animais de carga sobre os dias
percorrendo a cidade até aos bordos
carregam a morte sobre os ombros
Paula Tavares, O lago da lua

Vi tanta gente curvada no cais... Tanta gente. Ocorreu-me, da minha varanda, novamente a ideia de os aeroportos, os portos e os cais serem, mais do que lugares de partida, lugares de desencontro. Um toque íntimo de destinos cruzados mas, no instante seguinte, a infinita distanciação das pessoas. Vi, nessa manhã, tanta gente curvada no cais. O dia começava, a manhã estava clara e fresca na sua inauguração. Mesmo assim toda aquela gente curvada. Crianças, sim, crianças. Os velhos sentados — conversando, olhando, esperando. Mas as pessoas que se moviam estavam curvadas. A vida é pesada.
Andavam de um para o outro lado, os olhos postos num navio ou no horizonte. As crianças — não percebo — não brincavam. Ou brincavam de ser adultos curvados: quietos, amolecidos de ânimos e brincadeiras, sonolentos de olhos abertos e o horizonte neles. As crianças moviam-se, vi da minha varanda, curvadas também. O céu estava para cair? Não raro o céu está quase a cair, e começa assim o peso. Uma multidão espessa de corpos movendo-se num limite aparentemente definido, cercados de mar, de pedra e de barcos, e todos os corpos se moviam de lenta maneira — latejante. Aquilo é que era uma tanta gente! Quis experimentar o peso do vento. Cuspi. Era um vento semelhante ao de outros dias, de outras manhãs. Espreitei o céu, aclareado. Tanta gente curvada. Tanta gente no cais. Fumo aqui e ali, onde se preparava, certamente, algum mata-bicho. Os velhos, os velhos gostam de mata-bichar. Mas e as crianças que gostam de brincar, por que corriam assim, agachantes? O peso, o peso, queria entender, discernir que peso era aquele. Nunca tinha visto tanta gente no cais, e nunca tinha visto tanta gente curvada no mesmo local, da mesma maneira, sem fronteira de idade, àquela hora do dia, àquela lenta movimentação. Passa o pássaro. Do meu mata-bicho, remeto-lhe umas boas migalhas. Pão, queijo. Quero que ele me entenda, que vá ao cais e me traga noticiosas confirmações, verídicas, factuais. De peso, pois. Que lhe esperaria aqui a recompensa, mais migalhas, ou quem sabe, um prato inteiro de milho. Olho o pássaro, suplicantementesperativo. Da minha varanda ao cais é já uma grande légua para esta minha perna. Olho o pássaro. O pássaro olha o cais. O cais cheio de gente. O pássaro-ponte entre o cais, a gente curvada e eu. O fim do meu mata-bicho sem conseguir conceber o porquê de tanta gente curvada no cais. Passou o pássaro, outra vez. Já não o vejo. Não distingo a mancha escura ao longe: será catarata, será pássaro? Mas a mancha cinzenta, a maré humana à beira do cais, mexe-se fervilhante. Têm todos a mesma altura quando estão curvados, ocorre-me. Há gente sentada, ao pé do fumo, aquecendo o olhar, o estômago talvez. E as mãos. As mãos junto à cara daquela gente curvada faz-me crer que choram. Tanto peso só podia originar isso.
O pássaro!, apetecia-me gritar para o pássaro. Ele em seus voos, ele e mais alguns colegas devolveriam a eretidão àquelas gentes. Três, quatro mil pássaros, passando rasantes por aquela gente curvada, passando por eles mais de uma vez, batendo as asas o mais estrondosamente possível, respingando água, ou merda, por que não?, respingando penas, reacordando o olhar das crianças, perturbando o mata-bicho dos velhos, requisitando a atenção dos adultos, soprando aos olhos dos recém-nascidos e crianças de colo, instigando a revolução provisória entre as cabras, o alvoroço entre os macacos nas jaulas, o latido sexual entre as cadelas, um pássaro ou dois pousando no enorme relógio para uma fotografia, quinhentos procurando o navio mais próximo, um deles sentando-se aqui ao pé de mim e do milho para fazer-me o relato, e o cais, o cais invertido de cores e movimentações, os sons alterados, a marginal estonteante, as palmeiras chilreando, o mar desperto, tudo para que o pássaro, gritado por mim, ou por outro, convocasse, sei lá, três, quatro mil pássaros que rompessem abruptamente com a curvatura daquela gente que, cega e desorientada, com o olhar no chão, procura vestígios de uma nova esperança.
Ondjaki, in E se amanhã o medo

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