quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Lição para pentear pensamentos matinais

Pensamentos, como cabelos, também acordam despenteados. Naquela faixa-zumbi que vai em slow motion, desde sair da cama, abrir janelas, avaliar o tempo e calçar chinelos até o primeiro jato da torneira — feito fios fora de lugar emaranham-se, encrespam-se, tomam direções inesperadas. Com água, mão, pente, você disciplina cabelos. E pensamentos? Que nem são exatamente pensamentos, mas memórias, farrapos de sonho, um rosto, premonições, fantasias, um nome. E às vezes também não há água, mão, nem pente, gel ou xampu capazes de domá-los. Acumulando-se cotidianas, as brutalidades nossas de cada dia fazem pouco a pouco alguns recuar — acuados, rejeitados — para as remotas regiões de onde chegaram. Outros, como cabelos rebeldes, renegam-se a voltar ao lugar que (com que direito?) determinamos para eles. Feito certas crianças, não se deixam engambelar assim por doce nem figurinha.
Pensamentos matinais, desgrenhados, são frágeis como cabelos finos demais que começam a cair. Você passa a mão, e ele já não está mais ali — o fio. No travesseiro sempre restam alguns, melhor não olhar para trás: vira-se estátua de cinza. Compacta, mas cinza. Basta um sopro. Pensamentos matinais, cuidado, são alterados feito um organismo mudando de fuso horário. Não deveria estar ali naquela hora, mas está. Não deveria sentir fome às três da tarde, mas sente. Não deveria sentir sono ao meio-dia, mas. Pensamentos matinais são um abrupto mas com ponto-final a seguir. Perigosíssimos. A tal ponto que há o risco de não continuar depois do que deveria ser curva amena, mas tornou-se abismo.
E só vamos em frente porque começam a acontecer as urgências. Enquanto a manhã dispara e o telefone toca e a campainha soa e as crianças precisam sair para a escola e o relógio de ponto ou qualquer coisa assim — incluindo os outros, sobretudo os outros — não esperam. Nada espera, ninguém. Você lava o rosto, finge não ter visto coisa alguma. É possível também ligar o rádio. Um banho frio, o café feito uma bofetada. Há pensamentos-matinais-despenteados que põem o rabo entre as pernas e dão o fora, mas outros — mulheres de Nelson Rodrigues — adoram apanhar.
Quanto mais você bate, mais ele arreganha os dentes e intica para apanhar mais. Isso magnetiza e atrai outros pensamentos, ainda mais descabelados e até então escondidos. Se era nome, vem um sobrenome. Se era rosto, vem a textura da pele, um cheiro, um jeito de olhar. Se fantasia, ganha cor, e assim por diante. Pensamentos desse tipo são quase sempre proustianos: loucos pelo velho e bom tempo perdido.
Soluções mais grosseiras, há. Como papel higiênico, amarrotá-los, jogá-los na privada, dar a descarga. Acontece que descargas, não quero parecer alarmista, às vezes entopem. E devolvem justamente aquilo que deveriam levar embora, num comportamento que é o avesso daquele para o qual foram programadas. Ah o avesso, esse o problema. Pensamentos assim são um sintoma do avesso. E o avesso é a superfície correspondente, igual em tamanho e forma, a tudo aquilo que você considera o direito. Conhecer de-cor-e-salteado o direito absolutamente não dá direito a conhecer também o outro lado. Sinto muito, mas ele sempre está lá. Incógnito, invisível, inviável. In, enfim.
Por ser assim, desordena-se. Pelas manhãs, mesmo que o de-manhã de alguns aconteça às seis da tarde. Mesmo nos calvos, a cabeleira abstrata pode amanhecer tão eriçada quanto a da Medusa. E se em vez de veneno as cobras tiverem mel? Tudo depende não me pergunte de quê. Só sei que deve-se olhar direito nos olhos deles, tocar sem nojo nem medo suas mãos cobertas de musgo, teias de aranha. Passar num susto a mão pelos cabelos, reais ou não. Deve-se sempre com a doçura e paciência possíveis nestas situações, mudar rápido de assunto. Ou cair no poço.
Caio Fernando Abreu, in Pequenas epifanias

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