Pensamentos,
como cabelos, também acordam despenteados. Naquela faixa-zumbi que
vai em slow motion, desde sair da cama, abrir janelas, avaliar o
tempo e calçar chinelos até o primeiro jato da torneira — feito
fios fora de lugar emaranham-se, encrespam-se, tomam direções
inesperadas. Com água, mão, pente, você disciplina cabelos. E
pensamentos? Que nem são exatamente pensamentos, mas memórias,
farrapos de sonho, um rosto, premonições, fantasias, um nome. E às
vezes também não há água, mão, nem pente, gel ou xampu capazes
de domá-los. Acumulando-se cotidianas, as brutalidades nossas de
cada dia fazem pouco a pouco alguns recuar — acuados, rejeitados —
para as remotas regiões de onde chegaram. Outros, como cabelos
rebeldes, renegam-se a voltar ao lugar que (com que direito?)
determinamos para eles. Feito certas crianças, não se deixam
engambelar assim por doce nem figurinha.
Pensamentos
matinais, desgrenhados, são frágeis como cabelos finos demais que
começam a cair. Você passa a mão, e ele já não está mais ali —
o fio. No travesseiro sempre restam alguns, melhor não olhar para
trás: vira-se estátua de cinza. Compacta, mas cinza. Basta um
sopro. Pensamentos matinais, cuidado, são alterados feito um
organismo mudando de fuso horário. Não deveria estar ali naquela
hora, mas está. Não deveria sentir fome às três da tarde, mas
sente. Não deveria sentir sono ao meio-dia, mas. Pensamentos
matinais são um abrupto mas com ponto-final a seguir.
Perigosíssimos. A tal ponto que há o risco de não continuar depois
do que deveria ser curva amena, mas tornou-se abismo.
E
só vamos em frente porque começam a acontecer as urgências.
Enquanto a manhã dispara e o telefone toca e a campainha soa e as
crianças precisam sair para a escola e o relógio de ponto ou
qualquer coisa assim — incluindo os outros, sobretudo os outros —
não esperam. Nada espera, ninguém. Você lava o rosto, finge não
ter visto coisa alguma. É possível também ligar o rádio. Um banho
frio, o café feito uma bofetada. Há
pensamentos-matinais-despenteados que põem o rabo entre as pernas e
dão o fora, mas outros — mulheres de Nelson Rodrigues — adoram
apanhar.
Quanto
mais você bate, mais ele arreganha os dentes e intica para apanhar
mais. Isso magnetiza e atrai outros pensamentos, ainda mais
descabelados e até então escondidos. Se era nome, vem um sobrenome.
Se era rosto, vem a textura da pele, um cheiro, um jeito de olhar. Se
fantasia, ganha cor, e assim por diante. Pensamentos desse tipo são
quase sempre proustianos: loucos pelo velho e bom tempo perdido.
Soluções
mais grosseiras, há. Como papel higiênico, amarrotá-los, jogá-los
na privada, dar a descarga. Acontece que descargas, não quero
parecer alarmista, às vezes entopem. E devolvem justamente aquilo
que deveriam levar embora, num comportamento que é o avesso daquele
para o qual foram programadas. Ah o avesso, esse o problema.
Pensamentos assim são um sintoma do avesso. E o avesso é a
superfície correspondente, igual em tamanho e forma, a tudo aquilo
que você considera o direito. Conhecer de-cor-e-salteado o direito
absolutamente não dá direito a conhecer também o outro lado. Sinto
muito, mas ele sempre está lá. Incógnito, invisível, inviável.
In, enfim.
Por
ser assim, desordena-se. Pelas manhãs, mesmo que o de-manhã de
alguns aconteça às seis da tarde. Mesmo nos calvos, a cabeleira
abstrata pode amanhecer tão eriçada quanto a da Medusa. E se em vez
de veneno as cobras tiverem mel? Tudo depende não me pergunte de
quê. Só sei que deve-se olhar direito nos olhos deles, tocar sem
nojo nem medo suas mãos cobertas de musgo, teias de aranha. Passar
num susto a mão pelos cabelos, reais ou não. Deve-se sempre com a
doçura e paciência possíveis nestas situações, mudar rápido de
assunto. Ou cair no poço.
Caio
Fernando Abreu, in Pequenas epifanias
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