domingo, 3 de janeiro de 2016

A literatura não é servil

A literatura começa a fazer isso com as crianças. Qual é o personagem principal? Qual o pedacinho de que você mais gostou? E mesmo que o menino goste do demônio, tem de falar que gostou do anjo, pois a escola não admite que se goste do demônio. Mesmo que goste da bruxa, tem de dizer que gosta da fada. A escola não dá conta dessa liberdade que nós temos. Essa simpatia que carregamos pela bruxa, pela sacanagem do demônio. Mas na escola não pode, a escola tempera isso. Tem escola servil.
A literatura não é servil. A literatura não serve a nada e a escola foi feita para servir alguém, ou a um partido político, a um ideal, enquanto a literatura foi feita apenas para encantar o outro. A literatura é feita de fantasia. Tudo o que penso, posso escrever. Nada é interditado, tudo posso dizer, desde que com uma forma elegante, bem organizada. Posso até dizer “os livro”, “os peixe nada”. Posso até dizer, mas propositadamente, conhecendo uma gramática profundamente. Aí, posso dizer qualquer coisa que quero. Só rompemos quando dominamos. Caso contrário não há rompimento. É preciso uma tradição para romper.
A literatura é essa coisa exagerada de fantasia. A gente só fantasia o que não temos. Não fantasiamos o que temos. Então, a literatura é feita de falta. O que escrevo é o que me falta. É isso que a literatura faz. A literatura é o lugar da falta. Para a escola é muito difícil cuidar da liberdade. A liberdade é muito fascinante, muito boa. A liberdade é uma coisa extremamente exagerada, bonita, clara. E a escola não dá conta disso. A escola é para conter. Criança educada é criança contida. A escola de hoje acha que esse menino é educado porque antes de responder, ele conta até dez, porque ele senta com a perna cruzada, porque ele come com a boca fechada. Todo contido é educado. Todo expansivo é mal-educado.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Palestra no Teatro do Paiol, Curitiba - PR

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