Escrevi
meu primeiro conto em Bombaim, com dez anos de idade. O título era
“Over the rainbow” [Além do arco-íris]. Não passava de uma
dúzia de páginas, aplicadamente datilografadas pela secretária de
meu pai em papel fino, que acabaram perdidas em algum ponto dos
labirínticos deslocamentos de minha família entre a Índia, a
Inglaterra e o Paquistão. Pouco antes da morte de meu pai, em 1987,
ele me informou ter encontrado uma cópia embolorando em um velho
arquivo, mas apesar de meus pedidos nunca me mostrou. Esse incidente
sempre me intrigou. Talvez ele nunca tenha encontrado de fato o conto
e nesse caso teria sucumbido à tentação da fantasia, e esse foi o
último dos muitos contos de fadas que me contou. Ou então ele
realmente encontrou o conto e guardou-o para si como um talismã e
lembrete de tempos mais simples, considerando-o um tesouro dele, não
meu — seu pote de ouro nostálgico e paternal.
Não
me lembro de muita coisa do conto. Era sobre um menino bombainense de
dez anos de idade que um dia se vê no começo de um arco-íris, um
lugar tão ilusório quanto qualquer final com pote de ouro e
igualmente tão promissor. O arco-íris é largo, tão largo quanto
uma calçada, e construído como uma escadaria grandiosa.
Naturalmente, o menino começa a subir. Esqueci quase todas as suas
aventuras, exceto um encontro com uma pianola falante cuja
personalidade era um improvável híbrido de Judy Garland, Elvis
Presley e os “cantores de fundo” dos filmes indianos, muitos dos
quais faziam O Mágico de Oz parecer realismo de vida cotidiana.
Minha
fraca memória — que minha mãe chamava de “esqueçória” —
é, provavelmente, uma bênção. Enfim, me lembro do que é
importante. Lembro que O Mágico de Oz (o filme, não o livro, que
não li em criança) foi minha primeiríssima influência literária.
Mais que isso: lembro que quando foi mencionada a possibilidade de eu
ir para a escola na Inglaterra, isso me soou tão excitante quanto
qualquer viagem além do arco-íris. A Inglaterra parecia uma
perspectiva tão maravilhosa quanto Oz.
O
mágico, porém, estava bem ali, em Bombaim. Meu pai, Anis Ahmed
Rushdie, era um pai mágico para filhos jovens, mas tendia também a
ter explosões, ataques de raiva trovejantes, relâmpagos de faíscas
emocionais, baforadas de fumaça de dragão e outras ameaças do tipo
das também praticadas por Oz, o grande e terrível, o primeiro Mago
De Luxe. E quando a cortina se abriu e nós, seus filhos em
crescimento, descobrimos (como Dorothy) a verdade sobre a impostura
adulta, foi fácil para nós pensar, como ela, que nosso homem devia
ser um homem muito mau mesmo. Levei metade da vida para entender que
a grande apologia pro vita sua do Grande Oz cabia igualmente bem para
meu pai; que ele também era um homem bom, mas um mago muito ruim.
Salman
Rushdie, in Cruze esta linha
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