Então
Deus puniu a minha loucura e soberba; e quando desci ruelas escuras e desabei
do castelo sobre a aldeia, meus sapatos faziam nas pedras irregulares um ruído
alto. Sentia-me um cavalo cego. Perto era tudo escuro; mas adivinhei o começo
da praça pelo perfil indeciso dos telhados negros no céu noturno.
De
repente a ladeira como que encorcovou sob meus pés, não era mais eu o cavalo,
eu montava de pé um
cavalo de pedras, ele galopava rápido
para baixo.
Por milagre não caí,
rolei vertical até
desembocar no largo vazio; mas então
divisei uma pequena luz do além.
O homem da hospedaria me olhou com o mesmo olhar de espanto e censura com que
os outros me receberiam –
como se eu fosse um paraquedista
civil lançado no
bojo da noite para inquietar o sono daquela aldeia.
- Só
tenho seis quartos e estão
todos cheios; eu e outro homem vamos dormir na sala; aqui o senhor não pode ficar de maneira nenhuma.
Disse-me que, dobrando à esquerda, além do cemitério, havia uma casa cercada de árvores; não era pensão mas às vezes acolhiam alguém. Fui lá, bati palmas tímidas, gritei, passei o portão, dei murros na porta, achei uma aldraba
de ferro, bati-a com força,
ninguém lá dentro tugiu nem mugiu. Apenas o vento
entre as árvores
gordas fez um sussurro grosso, como se alguns velhos defuntos aldeões, atrás do muro do cemitério, estivessem resmungando contra mim.
Havia outra esperança, e marchei entre casas fechadas; mas,
ao cabo da marcha, o que me recebeu foi a cara sonolenta de um homem que
desanimou com monossílabos
secos. Lugar nenhum; e só
a muito custo, e já
inquieto porque eu não
arredava da porta que ele queria fechar, me indicou outro pouso. Fui – e esse nem me abriu a porta, apenas uma
voz do buraco escuro de uma alta janela me mandou embora.
“Não há nesta aldeia de cristãos um homem
honesto que me dê pouso por uma noite? Não há sequer uma mulher desonesta?”
Assim
bradei, em vão. Então, como longe passasse um zumbido de aeroplano, me pus a
considerar que o aviador assassino que no fundo das madrugadas arrasa com uma
bomba uma aldeia adormecida – faz, às vezes, uma coisa simpática. Mas reina a
paz em todas estas varsóvias escuras; amanhã pela manhã toda essa gente abrirá
suas casas e sairá para a rua com um ar cínico e distraído, como se fossem
pessoas de bem.
Não
há um carro, um cavalo nem canoa que me leve a parte alguma. Ando pelo campo;
mas a noite se coroou de estrelas. Então, como a noite é bela, e como de dentro
de uma casinha longe vem um choro de criança, eu perdoo o povo da França.
Marcho entre macieiras silvestres; depois sinto que se movem volumes brancos e
escuros, são bois e vacas; ando com prazer nessa planura que parece se erguer
lentamente, arfando suave, para o céu de estrelas. Passa na estrada um homem de
bicicleta. Para um pouco longe de mim, meio assustado, e pergunta se preciso de
alguma coisa. Digo-lhe que não achei onde dormir, estou marchando para outra
aldeia. Não lhe peço nada, já não me importa dormir, posso andar por essa
estrada até o sol bater na minha cara.
Ele
monta na bicicleta, mas depois de alguns metros volta. Atrás daquele bosque me
aponta passa a estrada de ferro, e ele trabalha na estaçãozinha humilde: dentro
de duas horas tenho um trem.
Lá
me recebe pouco depois, como um grã-senhor: no fundo do barracão das bagagens já
me arrumou uma cama de ferro; não tem café, mas traz um copo de vinho.
Já não quero mais dormir; na sala
iluminada, onde o aparelho do telégrafo faz às vezes um ruído de inseto de
metal, vejo trabalhar esse pequeno funcionário calvo e triste – e bebo em silêncio
à saúde de um homem que não teme nem despreza outro homem.
Rubem
Braga
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