“A má consciência é para mim o estado mórbido em
que devia ter caído o homem quando sofreu a transformação mais radical que
alguma vez houve, a que nele se produziu quando se viu acorrentado à argola da
sociedade e da paz. À maneira dos peixes obrigados a adaptarem-se a viver em
terra, estes semianimais, acostumados à vida selvagem, à guerra, às correrias e
aventuras, viram-se obrigados de repente a renunciar a todos os seus nobres
instintos. Forçavam-nos a irem pelo seu pé, a ‘levarem-se a si mesmos’, quando
até então os havia levado a água: esmagava-os um peso enorme. Sentiam-se
inaptos para as funções mais simples; neste mundo novo e desconhecido não
tinham os seus antigos guias estes instintos reguladores, inconscientemente
falíveis; viam-se reduzidos a pensar, a deduzir, a calcular, a combinar causas
e efeitos. Infelizes! Viam-se reduzidos à sua ‘consciência’, ao seu órgão mais
fraco e mais coxo! Creio que nunca houve na terra desgraça tão grande,
mal-estar tão horrível!
Acrescente-se a isto que os antigos instintos não
haviam renunciado de vez às suas exigências. Mas era difícil e amiúde
impossível satisfazê-las; era preciso procurar satisfações novas e
subterrâneas. Os instintos sob a enorme força repressiva, volvem para dentro, a
isto se chama interiorização do homem; assim de desenvolve o que mais
tarde se há-de chamar ‘alma’.
Aquele pequeno mundo interior vai-se desenvolvendo
e ampliando à medida que a exteriorização do homem acha obstáculos. As
formidáveis barreiras que a organização social construía para se defender
contra os antigos instintos de liberdade e, em primeiro lugar, a barreira do
castigo, conseguiram que todos os instintos do homem selvagem, livre e
vagabundo, se voltassem contra o
homem interior.
A ira, a crueldade, a necessidade de perseguir,
tudo isto se dirigia contra o possuidor de tais instintos; eis a origem da ‘má
consciência’. O homem que, por falta de resistência e de inimigos exteriores,
colhido no potro da regularidade dos costumes, se despedaçava com impaciência,
se perseguia, se devorava, se amedrontava e se maltratava a ele mesmo; este
animal a quem se quer domesticar, mas que se fere nos ferros da sua jaula; este
ser a quem as privações fazem enlanguescer na nostalgia do deserto e que fatalmente
devia achar em si mesmo um campo de aventuras, um jardim de suplícios, uma
região perigosa e incerta; este louco, este cativo, de aspirações impossíveis,
teve de inventar a ‘má consciência’.
Então veio ao
mundo a maior e mais perigosa de todas as doenças, o homem doente de si mesmo foi consequência
de um divórcio violento com o passado animal, de um salto para novas situações,
para novas condições de existência, de uma declaração de guerra contra os
antigos instintos que antes constituíam a sua força e o seu temível caráter.”
Friedrich Nietzsche, in A Genealogia da Moral
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