“No golfo de uma privança, nunca o perigo
é mais certo, que quando a fortuna é mais próspera. De duas maneiras cega a
fortuna, porque cega como luz e cega como foice; com uma mão abraça, e com
outra corta; com a que abraça introduz a cegueira, e com a que corta mostra o
desengano. Consiste a prudência em que se temam os resplendores da luz, para
que se não cegue aos rigores do golpe. Não faz mal à embarcação o penedo que
sobressai por cima da água; porque para evitar o perigo sabe o piloto desviar a
nau, por ver manifesto o perigo. Nos penedos que as águas escondem, aí naufraga
sempre o baixel; porque cobriu com capa de cristal uma ruína de penhasco, e os
que, navegando pelo mar, caminham com os olhos nas ondas, facilmente se esvaem,
e quanto maior é na cabeça o esvaecimento, vem a ser mais no coração a
fraqueza. Não sabe o que navega quanto tem vencido de distância, se do mesmo
mar não tira os olhos, e só fazendo balizas na terra sabe o quanto no mar
caminham. É um golfo grande o da privança, e a maior prudência consiste em que
se divirtam de alguma vez os olhos, e que façam balizas em terra firme, que é a
verdade.”
Padre
Antônio Vieira, in As Sete Propriedades da Alma
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