[…]
Vai, e eu, por um raio de momento, eu
tinha concebido que carecesse de tirar a vida a Zé Bebelo, por maior
sossego de meu reger, no futuramente; e agora eu estava quase triste,
com pena de ver que ele ia-sembora. O divertido havia de ser, sim
isso, de levar Zé Bebelo comigo, de sotenente, através desse
através. Ah, homem como aquele, não se matava. Homem como aquele,
pouco obedecia. A ele mandei fornecer mais um cavalo, e um cargueiro
― com mantimento, coisas, munição melhor. Dali a hora, mesmo, ele
pegou caminho. Para o sul. Vi quando ele se despediu e tocou ― com
o bom respeito de todos ― ; e fiquei me alembrando daquela vez, de
quando ele tinha seguido sozinho para Goiás, expulso, por
julgamento, deste sertão. Tudo estava sendo repetido. Mas, da vez
dessa, o julgamento era ele, ele mesmo, quem tinha dado e baixado. Zé
Bebelo ia s embora, conseguintemente. Agora, o tempo de todas as
doideiras estava bicho livre para principiar.
De seguida, parado persisti, para um
prazo de fôlego. Aí vendo que o pessoal meu já me obedecia,
prático mesmo antes da hora. Como que corriam e mexiam, se
aprontando para saída, sacudiam no ar os baixeiros, selavam os
cavalos. Tantos e tantos, eu sabia o nome e o defeito maior de cada
um daqueles homens, e tantos seus braços e tantos rifles e coragens.
Aí eu mandava. Aí eu estava livre, a limpo de meus tristes
passados. Aí eu desfechava. Sinal como que me dessem essas terras
todas dos Gerais, pertencentes. Por perigos, que por diante
estivessem, eu aumentava os quilates de meu regozijo. A fé, quando
eu mandasse uma coisa, ah, então tinha de se cumprir, de qualquer
jeito. ― Tenho resoluto que! ― e montei, com a vontade muito
confiada. Dali a gente tinha logo de sair, segundo a regra exata.
Estradeei. Nem olhei para trás. Os outros me viessem? Cantava o
trinca-ferro. Uma arara chiou cheio; levou bala, quase. Atrás de
mim, os cabras deram vivas. Eles vinham, em vinham. Eu contava,
prazido, o tôo dos cascos.
Dei galope. No Valado chegamos,
conforme íamos retornar, por assim. De galope, como está dito.
Gente, gentinha, nos rodeou, roceiros em seu serviço. Aquele seô
Habão, incluso, muito estarrecido. Esbarramos parada. O que eu
carecia era de uns instantes sempre meus, para estribar meu uso. Era
primeira viagem saída, de nova jagunçagem; e as extraordinárias
cousas, para que todos admirassem e vissem, eu estava em precisão de
fazer. E vi um itambé de pedra muito lisa; subi lá. Mandei os
homens ficassem em baixo, eles outros esperavam. Minha influência de
afã, alegria em artes, não padecesse de se estorvar em monte de
pessoas nenhumas. De despiço, olhei: eles nem careciam de ter nomes
― por um querer meu, para viver e para morrer, era que valiam.
Tinham me dado em mão o brinquedo do mundo.
Fiquei lá em cima, um tempo. Quando
desci, umas coisas eu resolvia. Aonde se ia; em cata do Hermógenes?
Ah, não. Antes, primeiro, para o Chapadão do Urucúia, onde tanto
boi berra. Ao que me seguissem. Ah, mas, assim, não. O que foi o que
eu pensei, mas que não disse: ― Assim não...
E veio perante minha presença o seó
Habão, mais antecipado que todos; macio, atarefadinho, ele já me
sussurrava. Homem, esse! Ele queria me oferecer dinheiro, com seus
meios queria me facilitar. Ah, não! de mim ele é que tinha de
receber, tinha de tomar. Agarrei o cordão de meu pescoço, rebentei,
com todas aquelas verónicas. As medalhas, umas delas que eu tinha de
em desde menino. Fiz gesto: entreguei, na mão dele. O senhor havia
de gostar de ver o ar daquele seó Habão, forçado de aceitar
pagamento do que nem eram correntias moedas de tesouro do rei, mas
costumeiras prendas de louvor aos santos. Ele estava em todos
tremóres ― conforme esses homens que não têm vergonha de mostrar
medo, em desde que possam pedir à gente perdão com muita seriedade.
Digo ao senhor: ele beijou minha mão! Ele devia de estar imaginando
que eu tinha perdido o siso. Assim mesmo, me agradeceu bem, e guardou
com muito apreço as medalhas na algibeira; até porque, não podia
obrar de outra forma. Matar aquele homem, não adiantava. Para o
começo de concerto deste mundo, que é que adiantava? Só se a gente
tomasse tudo o que era dele, e fosse largar o cujo bem longe de lá,
em estranhas terras, adonde ele fosse preta-e-brancamente
desconhecido de todos: então, ele havia de ter de pedir esmolas...
Isso, naquela hora, pensei. Ah, não. E nem não adiantava: mendigo
mesmo, duro tristonho, ele havia ainda de obedecer de só ajuntar,
ajuntar, até à data de morrer, de migas a migalhas...
As verônicas e os breves ele vendesse
ou avarasse para os infernos. Comigo só o escapulário ainda ficou.
Aquele escapulário, dito, que conservava pétalas de flôr, em
pedaço de toalha de altar recosturadas, e que consagrava um pedido
de benção à minha Nossa Senhora da Abadia. Que, mesmo, mais tarde,
tornei a pendurar, num fio oleado e retrançado. Esse eu fora não
botava, ah, agora podia desdeixar não; inda que ele me reprovasse,
em hora e hora, tantos meus malfeitos, indas que assim requeimasse a
pele de minhas carnes, que debaixo dele meu peito todo torcesse que
nem pedaço quebrado de má cobra.
E, num reverter de mão, eu já estava
pensando! o que eu ia fazer com ele, com o seô Habão, por alguma
alvíssara de mercê. Porque, em fato, ele merecia, e eu a ele devia.
Porque ele tinha vesprado em reconhecer meu poder, antes de outro
qualquer; e mesmo um barão de presente dele tinha sido, e era,
aquele meu formoso cavalo Siruiz, em qual eu estava amontado.
Aí, me lembrei, de uma coisa, e isso
era próprio encargo para ele, cabendo em sua marca de qualidade. Me
lembrei da pedra! a pedra de valor, tão bonita, que do Arassuaí eu
tinha trazido, fazia tanto tempo. Tirei o embrulhinho, da bolsa do
cinto. Apresentei a ele. Eu falei!
― Seô Habão, o senhor escute, o
senhor cumpra! pega este, mimo, zelando com os dedos todos de suas
mãos... Já e já, o senhor viaje, num bom animal, siga rumo dos
Buritís Altos, cabeceira de vereda, para a Fazenda Santa Catarina...
E mais disse! que era para entregar,
de minha parte, à moça da casa, que Otacília se chamava, a qual
era minha sempre nôiva. Mas não dando razão de nomear minha pessoa
pelos altos títulos, nem citando chefia de jagunços... Mas somente
prezar que eu era Riobaldo, com meus homens, trazendo glória e
justiça em território dos Gerais de todos esses grandes rios que do
poente para o nascente vão, desde que o mundo mundo é, enquanto
Deus dura!
Ah, não: em Deus não falasse. Seó
Habão pós atenção; perturbado mas sisudo, ele cogitava. O que ele
dizia, carecia de ser repetido, esfiando o assunto nas pontas dos
dedos, tostões. Ser rico é um diverso dissabór? Que um pudesse se
acautelar assim, me atanazava. Quem era? O que por primeira vez
reparei: que ele tinha as orêlhas muito grandes, tão grandonas;
até, sem querer, eu tive de experimentar com a mão o tamanho medido
das minhas. Melhor trazer esse sujeito comigo, perto mais perto, para
poder vigiar, por todas as partes? Melhor, não; o melhor seria
desmanchar a presença dele em definitivas distâncias. ― Não vou
comer teus peitos, teu nariz, teus duros olhos moles... ― eu
pensei. Mas ele também tinha alguma espécie de chefia. Eu virei a
cara, andei três passos, dando com Diadorim. ― O que eu tolero e
desentendo, esse homem: que é, porque, dele, não se consegue ter
raiva nem ter pena... ― falei. Mas vi um adêjo sombrio no meu
amigo, condenado que era de tristeza que não quer ceder suas
lágrimas. O quanto, por causa da pedra de topázio? ― eu
reconheci. Eu não tinha tido dó de Diadorim.
Deistá, tem tempo, Diadorim, tem
tempo... ― pensei, a meio. Da amizade de Diadorim eu possuía
completa certeza. E mais não me amofinei. De manhã cedo, o senhor
esbarra para pensar que a noite já vem vindo? O amor de alguém, à
gente, muito forte, espanta e rebate, como coisa sempre inesperada. E
eu estava naquelas impaciências.Trasmente que, em Otacília, mesmo,
verdadeiro eu quase nem cuidava de sentir, de ter saudade. Otacília
estava sendo uma incerteza ― assunto longe começado.Visse, o que
desse, viesse. O seó Habão ia, levava a pedra de topázio, a vida
do mundo ia vivendo, coração dá tantas mudanças; meus dízimos eu
pagava. O pássaro que se separa de outro, vai voando adeus o tempo
todo. Ah, não, eu não ― rio, riachos! ― não me amofinava.
Aquela tristeza de Diadorim eu não aceitei, nem ceitil não recebi.
Ingratidão, para o mais-tarde.
Mas o seô Habão não queria ter
terminado! negócio que carecia ainda de algum ponto. Dei licença.
Ele perguntou, sonseante! ...se eu não prazia de enviar por ele
algum recado também para o senhor meu pai, Selorico Mendes, dono do
São Gregório, e de outras boas e ricas fazendas?... Eu achei graça,
acenei que sim! disse que fosse, reproduzisse a minha saudação... E
então foi que o seô Habão levantou a cara, aquietado ― até
mediante sorriso. De sorte que, para corrigir em siso a tranquilidade
daquilo, eu determinei! ― O senhor vá logo, logo, de rota
abatida... E de lá não quero nenhuma resposta... ― enquanto ri,
de ver como ele me obedecia expresso, sem necessidade de caráter.
Onde que, mal dele livre me vi,
gritei, despachado, pelos demais. Dand ordens! ― A rodar por aí,
me trazerem os homens!
Ques homens? Os todos que fossem e
houvesse. ― Quem tiver instrumento ― a toque! Quem gostar de
dansar, arre melhor! Pr apreparo, trazer as mulheres também... Com
que as músicas, de lá, lá, lá... Tudo tinha de semelhar um
social. Ao pois, quem era que ordenava, se prazia e mandava? Eu,
senhor, eu! por meu renome, o Urutú-Branco... Ah, não. Festa? Eu já
estava resolvendo o contrário. Mas reunir aquela porção de homens,
e formar todos de guerreiros. A com a gente, a que viessem. Aquilo
valia? Os outros não falaram, decerto não acharam ou acharam. Ou
quanto mais que, eles, os meus, só mesmo o mover por me agradar, só,
era o que de si desejavam; e aquela minha lei era divertida. Saíram,
espalhados sendo, em caçar, em boa alarida.
[...]
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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