[…]
Em tanto o seó Habão jantou com a
gente. Raymundo Lé repartiu com os carecidos as pastilhas de
remédio. Diadorim meu amigo estava. Zé Bebelo me chamou adeparte,
me expondo especializado diversas coisas que pretendia reformar de
fazer. Alaripe conversou comigo. E dessa derradeira conversa quero
referir ao senhor. Foi que, eu puxando, eu desejando saber, se falou
muito nessas orações de curar a gente contra bala de morte, e em
breves que fecham o corpo. Alaripe então contou uma estória, caso
sucedido, fazia tempos, no giro do sertão. O qual era o seguinte.
Um José Misuso uma vez estava
ensinando a um Etelvininho, a troco de quarenta mil-réis, como é
que se faz a arte de um inimigo ter de errar o tiro que é destinado
na gente. Do que deu o preceito: ― ...Só o sangue-frio de fé é
que se carece ― pra, na horinha, se encarar o outro, e um grito
pensar, somente: Tu erra esse tiro, tu erra, tu erra, a bala sai
vindo de lado, não acerta em mim, tu erra, tu erra, filho de uma
cã!... Assim ele ensinou ao Etelvininho, o Misuso. Mas, aí, o
Etelvininho reclamou: ― Ara, pois, se é só isso, só issozinho,
pois então eu já sabia, mesmo por mim, sem ninguém me ensinar ―
já fiz, executei assim, umas muitas vezes... ― E fez igualzinho,
conforme o que eu defini? ― indagou o José Misuso, duvidando. ―
Igualzinho justo. Só que, no fim, eu pensava insultado era: ...seu
filho duma cúia!... ― o Etelvininho respondeu. ― Ah, pois
então ― o José Misuso cortou a questão ― ...pois então basta
que tu me pague só uns vinte milréis...
A gente muito rimos todos. A hora a
ser de satisfa, alegrias sobejavam. Se caçoou, se bebeu, um cantou o
sebastião. Mansinho, mãe, chegaram as voltas da noite. Dormi com a
cara na lua.
Acordei. A madrugada com luar, me
lembro, acordei com o rumor de cavaleiros que vinham chegando, no
esquipado, e que travavam repentino com áspero estremecimento os
cavalos! brrr úuu... Calculei! uns dez. Ao que eram.
Levantei, pulando de minha rede, quem podiam esses ser? Todos os
companheiros nos rifles, e eu não tinha escutado aviso de
sentinelas. Madrugada essa boa claridade. Luar que só o sertão viu.
Vim dele.
― Aí é o nosso João Goanhá, com
os cabras... ― disse Diadorim, que tinha a rede dele armada da
minha a uns três passos. Assim era. João Goanhá, o Paspe, Drumõo,
o compadre Ciril, o Bobadela, o Isidoro... Tornar a encontrar
companheiros desses, aí é que se põe significado na vida, se
encompridando se encurtando. O João Goanhá, gordo, forte, barbudo.
Era a dele uma barba muito fechada, muito preta.Veio do luar, chegou
bom. Todo o mundo falava, a gente se abraçavam. Com pouco o fogo se
acendia, para o café, para algum almoço. Enquanto isso, Zé Bebelo,
formado em pé, o mais rompante que pudesse, pedia notícias por
interrogação.
Antes, as verdades, essas, as coisas
comuns, conforme foi que se passaram. Mais não sei? Mesmo não tinha
botado ideia na cabeça, acabando de despertar de meu sono. Diadorim
era o que estava alegrinho especial! só se ele tinha bebido.
Diadorim, de meu amor ― põe o pezinho em cera branca, que eu
rastreio a flôr de tuas passadas. Me recordo de que as balas em meu
revólver verifiquei. Eu queria a muita movimentação, horas novas.
Como os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma parte, ele
quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo. O Urucúia é um rio, o
rio das montanhas. Rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde,
veredas, marimbús, a sombra separada dos buritizais, ele. Recolhe e
semeia areias. Fui cativo, para ser solto? Um buraquinho d água mata
minha sede, uma palmeira só me dá minha casa. Casinha que eu fiz,
pequena ― ô gente! ― para o sereno remolhar. O Urucúia, o
chapadão derredor dele. Estas árvores! essas árvores. Conversa, Zé
Bebelo! conversa, com as marrecas chocas, no meio das varas do
juncal. Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucúia
está sempre, ele corre. O que eu fui, o que eu fui. E esses velhos
chapadões ― dele, dos Couros, de Antônio Pereira, dos Arrepiados,
do Couto, do Arrenegado. Um homem é escuro, no meio do luar da lua ―
lasca de breu. Dentro de mim eu tenho um sono, e mas fora de mim eu
vejo um sonho ― um sonho eu tive. O fim de fomes. Ei, boto machado
em toda árvore. Eu caminhei para diante. Em, ô gente, eu dei mais
um passo à frente! tudo agora era possível.
Não era de propósito, o senhor não
julgue. Nem não fizeram espantos. Não exclamei, não pronunciei; só
disse.
― Ah, agora quem aqui é que é o
Chefe?
Só perguntei. Sei por que? Só por
saber, e quem-sabe por excessos daquela minha mania derradeira, de me
comparecer com as doidivãs bestagens, parlapatal. De forma nenhuma
eu não queria afrontar ninguém. Até com preguiça eu estava. A
verdade, porém, que um tinha de ser o chefe. Zé Bebelo ou João
Goanhá. Um para o outro olharam.
― Agora quem é que é o Chefe?
Somente eu estava por cima da surpresa
deles? Zé Bebelo ― o pensante, soberbo e opinioso. João Goanhá ―
duro homem tão simples, vindo por meio de dificuldades e distâncias,
desde a outra banda do rio, caçar a lei da companhia da gente, como
um costume necessário, que sem isso ele não conseguia direito se
pertencer. Com meus olhos, tomei conta.
― Quem é que é o Chefe?! ―
repeti.
Me olharam. Saber, não soubessem, não
podiam como responder: porque nenhum deles não era. Zé Bebelo ainda
fosse? Esse pardejou. E, o João Goanhá, eu vi aquele mestre quieto
se mexer, em quente e frio, diante das minhas vistas ― nem não
tinha ossos: tudo nele foi encurtando medida ― gesto, fala, olhar e
estar. Nenhum deles. E eu ― ah ― eu era quem menos sabia ―
porque o Chefe já era eu. O Chefe era eu mesmo! Olharam para mim.
― Quem é qu...
E... Ao que o pessoal, os companheiros
todos, convocados, fechavam roda. Eu felão. Não me entendessem? Foi
que alguns dos homens rosnaram. E foi esse Rasga-em-Baixo, o
principal deles, esse, pelo que era, pelo visto, oculto inimigo meu ―
que buliu em suas armas... Sanha aos crespos, luziu faca, no
a-golpe... Meu revólver falou, bala justa, o Rasga-em-Baixo se
fartou no chão, semeado, já sem ação e sem alma nenhuma dentro. E
aí o irmão dele, José Félix: ele tremeu muito lateral; livrou o
ar de sua pessoa; outro tiro eu também tinha dado...
― ...é o Chefe?!...
Ato de todos quietos permanecidos,
esbarrados com tanta singelez de choques. Ah, eu, meu nome era
Tatarana! E Diadorim, jaguarado, mais em pé que um outro qualquer,
se asava e abava, de repór o medo mór. Ele veio marechal. Se viram,
se sentiram, decerto que acertaram: pelos altos de nós dois; e
porque logo aí Alaripe, o Acauã, o Fafafa, o Nelson, Sidurino,
Compadre Ciril, Pacamã-de-Presas ― e outros e outros ― já
formavam do lado da gente. ― Tenho de chefiar! ― eu queria, eu
pensava. Isso eu exigia. Assim. João Goanhá se riu para mim. Zé
Bebelo sacudiu uns ombros.
Ali, era a hora. E eu frentemente
endireitei com Zé Bebelo, com ele de barba a barba. Zé Bebelo não
conhecia medo. Ao então, era um sangue ou sangues, o etcétera que
fosse. Eu não aceitava muita parlagem!
― Quem é que é o Chefe? ― eu
quis.
Se quis, foi com muita serenidade. Zé
Bebelo retardou. Eu social, encostado. Conheci que ele tardava e
pensava, para ver o que fazer mais vagarosamente.
― Quem é-que? ― eu brando
apertei.
Eu sabia do respirar de todos. Durasse
mais, aquilo eu já largava, por me cansar, por estar achando cacete.
Minha vontade estrôina de paliar! ― Seu Zé Bebelo, velho, tu
me desculpe... ― eu calei. Zé Bebelo se encolheu um pouco, só.
Aí ele não tremeu, no sucinto dos olhos.
― A rente, Riobaldo! Tu o chefe,
chefe, é! tu o Chefe fica sendo... Ao que vale!... ― ele
dissezinho fortemente, mesmo mudado em festivo, gloriando um fervor.
Mas eu temi que ele chorasse. Antes, em rosto de homem e de jagunço,
eu nunca tinha avistado tantas tristezas.
― Sendo vós, companheiros... ― eu
falei para em volta.
Tantos, tantos homens, os nos rifles,
e eles me aceitavam.
Assim aprovaram. O Chefe Riobaldo. Aos
gritos, todos aprovavam. Rejuravam, a pois. A esses resultados. No
que eram com solenidade, sinceridade. Tudo dado em paz. Só aqueles
dois amaldiçoados irmãos, baldeados mortos, na ponta de unha. Ali,
enterrar aqueles dois seria faltar a meu respeito. Amém. Tudo me
dado. O senhor, mire e veja, o senhor! a verdade instantânea dum
fato, a gente vai departir, e ninguém crê. Acham que é um falso
narrar. Agora, eu, eu sei como tudo é! as coisas que acontecem, é
porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo da unha; e
com efeito tudo é grátis quando sucede, no reles do momento. Assim.
Arte que virei chefe. Assim exato é que foi, juro ao senhor. Outros
é que contam de outra maneira.
Ao fim, depois que João Goanhá me
aprovou, revi os aspectos de Zé Bebelo. Acertar com ele.
― O senhor, agora... ― eu quis
dizer.
― Não, Riobaldo... ― ele me
atalhou. ― Tenho de tanger urubú, no membora. Sei não ter
terceiro, nem segundo. Minha fama de jagunço deu o final...
Daí, riu, e disse, mesmo cortês:
― Mas, você é o outro homem, você
revira o sertão... Tu é terrível, que nem um urutú branco...
O nome que ele me dava, era um nome,
rebatismo desse nome, meu. Os todos ouviram, romperam em risos.
Contanto que logo gritavam, entusiasmados:
― O Urutú-Branco! Ei, o
Urutú-Branco!...
Assim era que, na rudeza deles, eles
tinham muita compreensão. Até porque mais não seria que, eu chefe,
agora ainda me viessem e dissessem Riobaldo somente, ou aquele
apelido apodo conome, que era de Tatarana. Achei, achava.
[…]
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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